Prefácio

Sete Anos Antes

Uma vez, vi uma reportagem na TV sobre uma pesquisa que relacionava os nomes das pessoas com a probabilidade delas serem solteiras, casadas ou divorciadas. Embora isso pareça inútil, a pesquisa foi feita para empresas de publicidade, que enviam propaganda específica de agências de casamento para os infelizes que estão fadados à solidão eterna por culpa dos seus pais. Acho que meu nome é um desses casos. Catarina. Isso é nome para uma velha de sessenta anos, não é? Mas para que as coisas fiquem bem claras, eu tenho apenas quatorze anos. Minha tia diz que eu sou muito madura para a minha idade, e minha mãe responde que é porque eu sempre cresci perto de muitos adultos, mas eu acho que é tudo culpa deste nome de velha solteirona que eu carrego.

Mas o meu nome não é nada perto das esquisitices deste dia. Eu tive que viajar mais de dez horas com minha mãe dirigindo um carro lotado com todas as coisas que trouxemos do Rio. Foi estranho, e até um pouco frustrante, descobrir que tudo que você juntou em quatorze anos de vida couberam dentro de um Palio. Mais frustrante ainda é nascer no Rio de Janeiro e ser obrigada a se mudar para uma cidade que fica a pelo menos quatro horas de viagem da praia mais próxima.

Assim que ouvi da minha mãe que nós teríamos que nos mudar para Ribeirão Preto eu bati o pé. Disse que não ia sair do Rio, que se ela fosse embora eu ia morar com a tia Rosana, que ela estava acabando com a minha vida e que eu ia morrer longe das minhas amigas. Mas depois eu tive que ceder. Minha mãe já estava desempregada há seis meses, e eu sei que esse emprego caiu do céu para nós. Ela vai ser contadora de um fazendeiro, nós vamos morar na casa dele (que minha mãe disse que é igual às mansões das novelas) e, como compensação por nos fazer mudar de cidade, ele ainda se comprometeu a pagar meus estudos, até a faculdade. Por mais que eu vá sentir saudades do Rio, não poderia ser tão egoísta.

Quando minha mãe parou o carro no portão da fazenda, concluí pelo tempo de demora da viagem que seria impossível voltar ao Rio de Janeiro nos finais de semana. Eu estava longe de casa, no meio do nada, rodeada por plantações de cana tão assustadoras quanto uma floresta mal assombrada. Pode parecer exagero, mas a cana era tão alta que uma pessoa podia se esconder no meio dela e se jogar na frente do nosso carro antes de termos permissão para entrar na fazenda. Pelo menos era isso que um jornal que vi na última parada anunciava na primeira página como o mais novo golpe dos bandidos locais. Respirei aliviada quando os portões se abriram depois que minha mãe se anunciou. Realmente, dava para ver uma mansão lá no fundo, e eu agradeci por todas as normas de segurança, embora o que eu queria realmente era estar no apartamento da tia Rosana. Tiroteios em favelas não eram nada perto daquele canavial assombrado com a penumbra do fim da tarde.

Agora, se eu tenho nome de velha, imagina o novo chefe da minha mãe! Adalberto Souza Ferreira. Eu me sinto com uns cinco anos a mais de idade só de falar o nome dele. Mas tirando isso, ele pareceu legal. A casa dele parece mesmo com aquelas de novela, tem hall de entrada, salão de festas, sala de jantar e tantos quartos quanto você conseguir imaginar. Só não gostei que não tem uma escada para o segundo andar; toda casa de novela tem que ter uma escada para um dos personagens despencar dela da maneira mais dramática possível. O chefe da minha mãe explicou que era o estilo das antigas casas de fazendas de café da região; apenas um andar térreo, rodeada por um jardim enorme e uma senzala escondida atrás. Quando ouvi falar da senzala, fiquei me perguntando se ela seria mal-assombrada, com toda aquela história de escravos torturados e mortos, mas então, como se tivesse ouvido meus pensamentos, ele disse para eu não me preocupar, porque na fazenda dele este “anexo” já tinha sido demolido. E é no terreno onde ficava a antiga senzala, acessível através de uma escada que sai do jardim, que fica a piscina. Eu posso estar longe do mar, mas pelo menos ganhei acesso livre à piscina!

Além do Seu Adalberto, moram na casa um senhor bem idoso, que todos chamam de tio Ricardo e a sobrinha dele. O nome dela é Mariana, e foi super simpática comigo. Ela deve ter uns vinte e cinco anos, está fazendo faculdade em São Paulo e só vem para cá nos finais de semana. Ela vai se formar em arquitetura este ano, e usa roupas tão bonitas... mesmo quando se resumem a uma calça jeans e camiseta para receber a nova secretária e sua filha. Bom, acho que se eu fosse sobrinha de um cara tão rico, também andaria sempre bem vestida e com o cabelo impecável. Fico até imaginando o guarda-roupa dela, ou melhor... o closet... Gente rica não tem armário, tem closet. Cheio de roupas, sapatos e acessórios daquelas lojas que nós, pobres mortais, ficamos namorando no shopping para depois comprar uma cópia barata no centro.

Depois de conhecer toda a casa, tive que admitir que, apesar da saudade da tia Rosana, da Carol e das outras meninas do colégio, estava começando a gostar da mudança para Ribeirão. Mas parece que só porque eu estava pensando nisso, minha mãe me deu o maior susto. E foi aí, também, que começou a maior esquisitice do dia. Nós estávamos tirando as primeiras malas do carro para levar no nosso quarto, ao lado dos quartos dos outros empregados, quando um amigo do Seu Adalberto chegou. Já estava escuro no pátio em frente à casa, mas a iluminação era clara o suficiente para eu ter certeza que nunca tinha visto aquele homem na vida. Não podia dizer o mesmo da minha mãe, que largou as bolsas que estava segurando no chão e correu até ele.

- O que você está fazendo aqui?

Eu só tinha visto minha mãe brava daquele jeito quando fiquei doente uma vez e não quiseram nos atender no hospital. Ela fez tanto escândalo que até apareceu num daqueles programas de baixaria da TV (ainda bem que não identificaram a gente, e eu lembro que acharam um médico rapidinho para me ver depois que a rede de televisão apareceu). Na hora, eu só fiquei implorando baixinho para que ela não fizesse nada parecido com aquele dia, ou então, com certeza, o Seu Adalberto mandaria a gente de volta para o Rio imediatamente.

O homem ficou olhando para ela, com o cenho franzido, como se estivesse tentando puxar da memória quem era aquela louca lhe fazendo perguntas.

- Marisa? – ele acertou o nome da minha mãe, embora ainda meio em dúvida. Sinal de que ele realmente a conhecia, e de que minha mãe não era tão doida assim.

- Como você soube que eu estava aqui? E por que você veio me procurar depois de tanto tempo?

Abandonar a minha mãe? Eu não lembrava de nenhum namorado dela parecido com ele... Senti um frio na barriga, e dessa vez não era por medo da minha mãe perder o emprego ao atacar um amigo do chefe. Se aquele homem teve mesmo um caso com ela e depois a abandonou, havia grandes chances dele ser o meu pai.

Eu nunca conheci o meu pai. Ele deixou a minha mãe antes mesmo de saber que ela estava grávida de mim. Também nunca tive vontade de conhecê-lo. Quando eu era menor e todo mundo na escola me perguntava dele, eu sentia raiva por não saber o que responder. Quando eu perguntava alguma coisa sobre ele, minha mãe só respondia que eu não tinha mais pai. Mas eu ouvia as conversas dela e da minha tia, que morava com a gente no Rio, quando elas achavam que eu era muito pequena ainda para entender. É por isso que eu sei que meu pai se chama Roberto Carlos, que ele nunca foi casado com a minha mãe, que a tia Rosana sugeriu que ela fizesse um aborto quando descobriu que estava grávida e que meu pai havia sumido, e que mesmo assim, minha mãe já me amava mesmo quando eu ainda estava na barriga dela, a ponto de assumir o desafio de manter um filho sozinha. Se minha mãe nunca precisou do meu pai para me criar, eu acabei chegando a conclusão que também não precisava dele, e estava muito bem assim. Mas naquela hora, parecia que tinha um buraco na minha barriga com a simples idéia de que poderia estar a apenas alguns passos de distância do meu pai.

- Deve estar havendo algum engano – o homem respondeu enquanto minha cabeça ficava lembrando das conversas entre minha mãe e a tia Rosana, que eu ouvia escondida. – Eu vim aqui para falar com o Lo... Com o Adalberto.

É, concluí, ele não podia ser o meu pai. Eu lembrava muito bem da minha mãe falando que ele era parecido com o Tom Cruise na época do Top Gun. O amigo do Seu Adalberto até não era feio, mas tinha a pele mais morena, olhos escuros e um traço que fazia parecer que tinha uma leve descendência indígena. Definitivamente, ele não parecia o Tom Cruise!

- Algum problema?

O chefe da minha mãe apareceu na porta, olhando bravo para ela. Depois que viu o outro homem no pátio, pareceu ainda mais contrariado. Felizmente, a ira dele não foi contra a minha mãe.

- O que você está fazendo aqui? – ele perguntou para o homem, com uma cara tão feia que qualquer um podia perceber que não era para ele estar ali.

- Seu Adalberto – minha mãe se intrometeu entre os olhares dos dois –, o Roberto é um antigo...

Roberto? Ela não estava querendo dizer Roberto Carlos, né? Nem sequer ouvi o resto das palavras dela. Meus olhos se arregalaram sem eu perceber e uma bola de nada estava presa na minha garganta.

- O nome dele não é Roberto – a voz brava do seu Adalberto anunciou, fazendo com que um peso enorme saísse dos meus ombros.

Mas então, minha mãe confirmou minhas primeiras suspeitas:

- O quê? – Seus os olhos estreitos e o cenho franzido que tanto me davam medo quando eram direcionados para mim estavam virados para o homem que não se chamava Roberto. – Até mesmo o seu nome você mentiu para mim?

Nesse ponto, a voz dela já tinha atingido aquele volume embaraçoso se estivéssemos num local público.

– Seu cafajeste!

Até que ela começou a gritar:

– Você fugiu e me deixou grávida, sozinha! Eu devia mesmo ter adivinhado que você era capaz de mentir o próprio nome!

Eu não ouvi mais nada do que minha mãe berrou depois disso. Em nenhum momento eu parei para pensar como o meu pai conseguiu achar a gente em Ribeirão Preto, ou por que ele veio atrás de nós, ou como ele conhecia o chefe da minha mãe. Era o meu pai que estava ali, merda! E eu não estava preparada para conhecê-lo! Eu não queria aquelas ceninhas de programas apelativos da TV, com pai e filha se abraçando como se tivessem mesmo sentindo a falta um do outro em quatorze anos de ausência. Eu queria fugir dali e parar de escutar a briga deles, não me importava o que ele responderia para minha mãe.

Eu corri. Contornei o jardim até chegar na parte de trás da casa, onde ficava a escada que descia para a piscina e que a gente passou algumas horas antes tão feliz. O caminho nem parecia mais tão bonito. Sentei numa espreguiçadeira e fiquei lá. O corpo meio deitado, com as pernas esticadas e minhas mãos segurando o buraco no meu estômago, olhando o céu que já tinha escurecido completamente e agora estava cheio de estrelas enquanto eles continuavam a discutir lá em cima. Bom, pelo menos a minha mãe estava discutindo. O outro cara não fazia nada e o seu Adalberto parecia querer apaziguar os dois.

Que merda... Quando eu me enchia da minha vida, ficava imaginado que meu pai era um cara rico como o seu Adalberto e que, mais cedo ou mais tarde, acabaria recebendo uma bela de uma herança caída do céu e todos os meus problemas estariam resolvidos. Agora, nem com isso eu podia mais sonhar.

Não sei quanto tempo eles ficaram conversando, mas dava para ouvir a voz da minha mãe lá da piscina. Eu não quis nem saber. Não me importava qual a desculpa para o meu pai ter mentido para ela ou até que ponto ele era o motivo de nós estarmos ali. Só sei que, depois de algum tempo, eu o vi descendo pela escada que levava até a área da piscina.

- Então... – ele começou, meio sem jeito. – Você é minha filha...

Eu só levantei os olhos para ele, observando o terno branco e o chapéu ridículo que ele usava na cabeça. Fala sério! Roberto Carlos e ainda aquela roupa? Quem usa chapéu hoje em dia!? Ninguém merecia um pai assim... E pensar que era para eu ser filha do “Tom Cruise”. Minha mãe devia estar cega quando se apaixonou por ele.

Mesmo sem eu dar bola, meu... err... pai... continuou parado, olhando para mim em silêncio. Pelo jeito, só sairia dali se eu conversasse com ele. Então, respondi, sem nem olhar para a cara dele:

- É o que a minha mãe diz...

Ele assentiu com a cabeça.

- Eu... Eu acho que devo pedir desculpas. – Ele se aproximou de mim, parando do lado da espreguiçadeira. – Eu... nunca conheci um filho antes... Não sei muito bem como me comportar nestas situações.

- Você podia começar me dizendo seu nome verdadeiro – respondi, seca. “Nunca conheci um filho antes...” Aff! Eu não tinha que ser educada com um cara desses, tinha?

- Hummm... – Ele sentou de lado na outra espreguiçadeira, apoiou os cotovelos nos joelhos e levantou as mãos para apoiar o queixo, numa posição de quem estava prestes a contar algo muito sério. – Você não vai gostar de saber...

Eu o encarei, incrédula.

- Não vou gostar de saber o seu nome? – ri.

O que poderia ser pior que Roberto Carlos?

– Eu acabei de descobrir que o meu pai não é nada parecido com o astro de Hollywood como minha mãe sempre disse que você era. Vá em frente. Eu agüento ouvir o seu nome verdadeiro.

- Boto – ele respondeu.

- Boto? – Estreitei os olhos e balancei a cabeça, sem entender nada do que ele estava falando. – Que boto? Eu perguntei o seu nome. 

Eu já tinha me sentado e virado para ele nessa hora, levantando a voz, impaciente com aquela conversa maluca.

- Boto, o Boto. Boto Cor-de-Rosa. Nunca ouviu falar de mim?

Eu dei uma gargalhada. A conversa estava ficando cada vez mais absurda, mas não custava entrar na brincadeira para ver até onde ele queria chegar...

- Boto Cor-de-Rosa... Sei... Tipo aquele que está em extinção na Amazônia.

- Não – ele respondeu com um suspiro. – Tipo aquele que sai a noite para seduzir mulheres solteiras.

Eu abri a boca de susto. Não dava para acreditar que ele estava querendo me convencer que era uma lenda.

- Não precisa me olhar com essa cara! – ele se defendeu. – Eu sei que o que eu faço não é nada nobre, mas eu sempre fui assim. Minha fama já ajudou muitas meninas a explicarem suas barrigas e, em minha defesa, não tenho tantos filhos por aí quanto alegam.

- Ah tá... – respondi, levando a brincadeira até onde desse. – Mas eu sou sua filha mesmo, né?

- Parece que sim – ele respondeu de novo em meio a um suspiro.

O cara só podia ser louco. Ele parecia mesmo acreditar que era O Boto.

- Sabe... É meio difícil acreditar nisso – disse. – É a primeira vez que vejo uma lenda em carne e osso.

- Não acredita que eu sou uma Lenda? – Ele pareceu ofendido. – Você mora na casa de um Lobisomem e não acredita que eu seja uma Lenda também... Oras... – Ele tirou o chapéu e abaixou a cabeça em minha direção. – Olhe aqui! Tá vendo o meu respiro? Eu sou o Boto!

Sim... Ele tinha mesmo um buraco na cabeça. Um respiro... como os botos e os golfinhos têm. Deu vontade de vomitar.

- Acredita agora? – ele perguntou depois de recolocar o chapéu na cabeça. De repente, eu não achava mais aquele chapéu tão horroroso.

- Isso é ridículo – respondi. – A lenda do boto é só uma história que os homens inventaram para explicar a gravidez das filhas solteiras.

- Não exatamente – ele disse, sério. – Eu nasci no Rio Amazonas. Quando atingi a maturidade, comecei a me transformar em homem durante a noite e acabei conhecendo algumas moças por aí. Aproveitando a minha história, começaram a me culpar por todos os bastardos que nasceram nas cidades por onde passei.

Eu franzi os olhos para ele, tentando assimilar o que ele disse.

- O mesmo foi com o Lobisomem – ele continuou, virando a cabeça para apontar para a casa atrás dele. – Todo sétimo filho numa seqüência só de homens nasce um lobisomem. Quando as pessoas perceberam isso, começaram a falar e a fofocar, até alguém chamá-lo de Lenda. A maioria de nós gosta dessa palavra... Lenda... e acaba se definindo assim também, para nos diferenciar de vocês, Humanos, que são mortais.

- Ok. Então você quer dizer que vocês... Lendas... existem mesmo? Como a Sininho do Peter Pan? Que precisa que a gente acredite em vocês para continuarem existindo?

- Não. As Lendas existem. Vocês acreditam se quiserem.

Ah tá... E se eu não quisesse acreditar que o louco da minha frente era o meu pai?

- Pera aí... – disse depois que ele ficou em silêncio, provavelmente esperando até eu assimilar tudo isso. – Você disse que eu moro com um lobisomem? O Seu Adalberto é um lobisomem?

Ele apenas deu um sorriso irônico, confirmando minha suposição.

- E é seguro morar na casa de um lobisomem?

- Desse lobisomem, sim – o Boto respondeu. – Ele tem um porão escondido onde fica nas noites de lua cheia. Há séculos que não ataca ninguém.

Irracionalmente, olhei para o céu. Lua crescente. Pelo menos naquela noite eu estava fora de perigo.

O Boto riu.

- Vejo que você está começando a acreditar.

- É... Esse seu buraco na cabeça é bem convincente.

Ele assentiu, sorrindo.

- É verdade.

- Isso significa que eu sou alguma espécie de mutante? – perguntei, meio insegura. – Algum tipo de mestiça? Meio Lenda, meio Humana?

Ele parou para pensar por um tempo, depois perguntou:

- Você já ficou doente? Já correu risco de vida?

- Já fiquei doente várias vezes, sim. Mas acho que nunca a ponto de quase morrer...

- Mas se você for atropelada, por exemplo, acha que pode morrer?

Eu pensei na possibilidade... Aquela conversa era totalmente absurda, mas eu já tinha me conformado que estava sonhando e aquilo ia acabar assim que eu acordasse. Por fim, lembrei do dia que me machuquei jogando vôlei na escola.

- Eu já quebrei o braço uma vez. Acho que se eu for atropelada, posso até não morrer, mas ia me quebrar inteira.

- Ah... – ele respondeu, fazendo um gesto com a mão para eu não me preocupar mais com aquilo. – Então, provavelmente, você é só uma Humana.

Que bom. Eu não acordaria muito bem de manhã se tivesse sonhado que tinha um buraco na cabeça igual ao do Boto.

- Mas não conte isso para a sua mãe – ele continuou. – Humanos têm dificuldade de assimilar a nossa existência. O Lobisomem deve estar contando alguma história bem convincente sobre mim para ela e, claro, nunca vai admitir que é uma Lenda também. Ele me pediu para fazer o mesmo com você, mas eu achei que deveria contar a verdade, ao menos para a minha filha.

- Puxa! Obrigada. – Acho que meu agradecimento soou meio irônico, mas eu estava feliz pela consideração dele.

Ele sorriu de novo. Mas o sorriso dele parecia um lamento, como se ele tivesse arrependido de nunca ter me conhecido antes, ou de nunca ter conhecido nenhum dos seus filhos. Por um momento, eu comecei a sentir simpatia por aquele homem... ou boto... seja lá o que ele era.

- Roberto Carlos? – arrisquei perguntar. – Não tinha um nome menos brega, não?

Ele deu de ombros.

- Ele usava branco como eu, faz sucesso até hoje. Eu vi o nome na capa de um disco e gostei. Usei por algum tempo.

- E por que minha mãe diz que você se parece com o Tom Cruise?

- É como ela me vê. Faz parte da minha sedução. As mulheres me enxergam como o homem ideal delas. Facilita muito as coisas.

- Se fosse assim, você devia se parecer com o Tiago Lacerda para mim, ou o Reinaldo Gianekini – argumentei.

- Você é minha filha – ele respondeu. – Podem me acusar de muitas canalhices, mas eu jamais seduziria a minha própria filha!

- Ah... – respondi. – Isso é muito acolhedor...

Papo estranho, noite silenciosa... Eu finalmente entendi o conceito da palavra “desconcertante”. Estava sentada de frente para ele, mas os meus olhos desviados para a piscina.

- Acho melhor eu ir embora. – Ele finalmente se levantou, apontando com a cabeça em direção à saída. - Não vou conseguir conversar com o Lobisomem hoje. De agora em diante, vou ter que procurá-lo na cidade.

- Por causa da minha mãe? – arrisquei.

Ele assentiu com a cabeça.

- Acho que ela não quer me ver – ele respondeu. – Deve ter bons motivos para isso.

Eu concluí que, se essa história de lendas era realmente verdade, eles não deviam ser muito espertos no quesito “humanos”.

- Posso te dar um conselho? – perguntei.

Ele arregalou os olhos, divertido, e acenou para que eu continuasse.

- Você devia usar camisinha. Só porque você é imortal e não precisa se preocupar em pegar nenhuma doença, não é motivo para não se cuidar. Ao menos evitaria mais filhos perdidos por aí.

Os olhos que já estavam arregalados, aumentaram ainda mais, e ele me encarou boquiaberto. Não entendo os adultos. Eles nos enchem de aulas de educação sexual, nos alertam sobre drogas, AIDS, gravidez indesejada... E quando a gente fala alguma coisa coerente, ficam com essas caras de espantados. Como se uma menina de quatorze anos não devesse saber dessas coisas...

Mas se o meu pai dizia ser O Boto, talvez, para ele, aquele tenha sido um conselho importante, porque depois de um tempo, ele sorriu, meio enrubescido.

- Isso parece mais um conselho que eu deveria ter dado a você, não é? Viu como eu não tenho jeito com Humanos?

- Tudo bem – respondi. – Eu entendo. Eu acho.

Ele se virou e começou a sair, deu apenas alguns passos e estancou, voltando de novo para mim.

- Acho que fiquei devendo um conselho para você. De pai para filha.

- De Lenda para Humana? – tentei brincar, rindo levemente.

- Isso – ele respondeu, devolvendo o sorriso.

Eu fiquei esperando. Ele olhou para os lados, espreitando na escuridão como se para ter certeza que ninguém nos ouvia.

- Cuidado com os vampiros. – Foi o conselho dele. – Eles são tão sedutores quanto eu, mas quando se interessam por um humano, é apenas para sugar sangue, entendeu?

Eu fiz que sim, olhando para ele meio que sem entender nada.

- Não deixe se enganar. Eles não têm sentimentos, não se apaixonam, não lamentam não poder ver a luz do sol. É tudo conversa para que você deixe que eles chupem o seu sangue. Você se assustaria com a quantidade de meninas da sua idade que são enganadas por eles!

Dizendo isso, ele deu as costas para mim e algo me dizia que eu jamais o veria novamente.
Eu encontro com o meu pai e ele me promete que não vai me seduzir e me alerta contra os vampiros. 

Uau! Definitivamente, eu estava sonhando.

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