De
Adalberto Souza Ferreira, vulgo Lobisomem
Sete
sempre foi um número rodeado de mistérios para as Lendas. Eu devia ter me tocado
disso quando recebi a notícia do assassinato de Vanessa, exatamente sete anos
depois de ter acolhido uma filha do Boto na minha casa. Jamais tinha pensado na
Catarina como uma ameaça, mas agora sei que tudo começou no dia em que
contratei a mãe dela. Naquela época, não tinha como saber que minha futura
contadora tivera um caso com o Boto quando era mais nova, mas o Boto jamais
acreditaria em mim e, com certeza, entendeu que eu pretendia manter a filha
dele como minha refém. Não dei bola para o mal entendido, uma vez que sempre
tentei evitar aproximações maiores com outras Lendas, mas foi exatamente sete
anos depois que a notícia do assassinato da filha de outro funcionário meu acabou
me obrigando a estreitar relações não só com o Boto Cor-de-Rosa, mas com uma
série de criaturas conhecidas como Lendas Brasileiras, para minha infelicidade.
Não
estava em Ribeirão naquela noite de lua cheia. Dormi no apartamento que
mantinha em São Paulo para quando precisava ir à capital a negócios. A manhã
havia começado com uma névoa esfumaçada, típica da cidade naquela época do ano,
ou talvez em qualquer época do ano. A televisão despertou logo depois da
claridade ter invadido o quarto, levando sons diversos e ainda incompreensíveis
aos meus ouvidos. Já estava de volta a minha forma humana, mas ainda atado à
cama, uma medida preventiva para impedir que minha transformação me criasse
problemas. O pior das madrugadas de lua cheia era essa espera depois do
alvorecer, o corpo dolorido e faminto, as correntes ainda apertadas, machucando
um homem fraco que mal conseguia lutar contra elas. Aos poucos minha mente foi
despertando, e sem alternativa, fiquei apenas ouvindo o jornal da manhã.
Há
vários lobisomens espalhados pelo Brasil, mas acredito que eu fui o primeiro
menino nascido de uma família de seis filhos varões na recém descoberta colônia
portuguesa. Sendo o sétimo filho homem, caiu-me a maldição de me transformar
num ser metade humano, metade lobo, toda a primeira noite de lua cheia do mês.
Os séculos passaram e outros lobisomens foram surgindo. Alguns eram o sétimo
filho depois de seis meninas, outros eram vítimas de mordidas de lobos
gigantes; há várias explicações para nossa existência, mas eu sou o mais velho
e, por isso, dizem que sou o mais poderoso de todos eles.
Infelizmente,
a força inigualável que ganho a cada lua cheia vem acompanhada de um instinto
irracional, uma fome de sangue e uma forma peluda monstruosa que, aprendi com o
tempo, me obrigam a me esconder do mundo civilizado. A fazenda em Ribeirão
Preto foi bem preparada para este inconveniente, mas nem sempre eu tenho o
total controle de minha agenda, e compromissos na capital me fizeram tomar
certas providências para casos como aquela noite. Um cômodo à prova de som e
fortes correntes, além de uma garota de programa contratada para me amarrar ao
entardecer e voltar apenas na manhã seguinte.
Foi
aí que Vanessa entrou na minha vida. Filha de um dos empregados da fazenda,
mudou-se para São Paulo com a desculpa de fazer faculdade, até que descobriu
que esta podia ser apenas uma alavanca para conhecer executivos em busca de
companhia na maior cidade do país. Claro que a família não sabia de nada, ou
talvez tivessem apenas fechado os olhos para não ter que imaginar como ela
conseguia pagar o caríssimo aluguel e a faculdade particular. Vanessa cobrava
caro pela discrição, e além disso, estava acostumada com clientes muito mais
extravagantes para se assustar com um fazendeiro do interior com desejos de
passar a noite inteira acorrentado. Em último caso, tínhamos um trato
silencioso, ela não me questionava, eu não comentava sobre nossos encontros com
o pai dela.
Era
Vanessa quem eu esperava naquela manhã, e ela chegou pontualmente, meia-hora
depois que a TV me despertou. Ela nunca se atrasava. Pronta para seguir para a
faculdade, usava apenas jeans e camiseta, diferente da loira elegante que me
visitara antes do anoitecer. Vestida como uma mulher ou na versão ingênua de
estudante aplicada, Vanessa conseguia despertar desejo em homens e lobisomens,
embora, para o meu próprio bem, eu a via como apenas mais uma empregada. A
vantagem de quase meio milênio de existência é já ter passado por experiências
que provam que os ditados populares – neste caso “Não misture negócios com prazer” – são mais sábios que qualquer
livro da lista dos mais vendidos de auto-ajuda. Nossos encontros eram
praticamente mudos. Sem qualquer tipo de explicações, entreguei-lhe o cheque
com a quantia combinada e ela saiu. Ouviria notícias dela apenas algumas horas
depois, no plantão do telejornal, como vítima de uma tentativa de assalto na
universidade em que ela estudava.
Mas antes
de saber do triste fim de Vanessa, eu ainda tive outro aborrecimento. Mal havia
terminado o café da manhã, que deveria repor toda a energia perdida na noite
passada, e o interfone tocou:
- Sr.
Adalberto? – o porteiro perguntou com uma voz desconfiada assim que o atendi. –
Tem um rapaz aqui querendo ver o senhor. Ele disse que é lá da sua terra, e que
o senhor o conhece apenas pelo apelido de Saci.
Claro
que eu não conhecia ninguém em Ribeirão, ou em nenhuma das minhas outras
fazendas, com o apelido de Saci. O único Saci que conhecia era um autêntico
Saci-Pererê. Meu coração parou por um instante.
-
Pode deixá-lo subir, seu Luiz – ordenei imediatamente, sem tempo para mais
reflexões. – Ele é de minha confiança.
Desliguei
o interfone e corri para a porta, acompanhando o elevador que indicava estar no
térreo e subindo, pensando que o Saci jamais fora de confiança. Mas era melhor
deixá-lo subir que correr o risco dele chamar atenção demais na portaria. Um
menino negro e perneta entrando num condomínio da alta classe paulistana
certamente traria a desconfiança dos meus exemplares vizinhos, conscientes da
nossa diversidade racial e sempre prontos a defender as causas dos deficientes
físicos.
Quando
o elevador chegou, abri a porta violentamente e puxei a figura magra recostada
dentro dele, deixando bem claro que não pretendia entrar em nenhuma de suas
brincadeiras. Eu o conduzi até o apartamento antes que alguém percebesse a
movimentação no corredor e tranquei a porta atrás de mim.
- O
que você veio fazer aqui? – perguntei assim que nos fechamos no apartamento.
-
Calma, Seu Lobo – ele respondeu com aquele jeito irônico dele. – Eu nunca fiz
mal a você, fiz? Não tem por que querer prejudicá-lo, tem? Eu só vim pedir a
sua ajuda.
Estreitei
os olhos, desconfiado.
- Não
me chame de Seu Lobo, não sou nenhum personagem de contos da carochinha.
E por que você acha que eu iria ajudá-lo, seja lá em que insanidade você se
meteu?
-
Porque eu sei que você não gosta de mim – o Saci respondeu, pulando pela sala
de estar com sua única perna até se acomodar numa poltrona confortável, livre
da muleta que carregava para fingir que era uma pessoa normal. – Mas antes de
discutirmos negócios, você tem fumo por aí? Desde que cheguei nesta cidade que
não dou um trago no meu pito.
Estreitei
os olhos ainda mais. Toda Lenda sabe que deve desconfiar das artimanhas de um
saci pererê, mas um saci sem o característico píleo vermelho e sem pito era
ainda mais perigoso, pois certamente estava sendo controlado pela pessoa que
lhe tirou os acessórios.
- Um
Saci-Pererê sem cachimbo nem gorrinho – disse, devolvendo o escárnio. – Em que
você se meteu? Quem retirou seu capuz? Quem ordenou você vir até aqui?
- Eu
vim por conta própria – o Saci respondeu, retirando o píleo de um dos bolsos da
camisa e recolocando-o na cabeça. – Não posso sair pelas ruas de São Paulo numa
perna só e com um capuz vermelho na cabeça. Todos iam pensar que eu sou aquele
da TV.
A
explicação parecia convincente. Se o Saci ainda possuía seu gorro,
provavelmente estava agindo por conta própria. Não precisaria me preocupar em
descobrir quem estava manipulando-o para me encontrar. Conhecendo o inimigo,
caminhei até onde ele havia se sentado para conversarmos.
-
Então, por que você veio me procurar?
Com
um sorriso maroto, o Saci retirou o cachimbo de outro bolso e o mostrou para
mim. Não obteria nenhuma resposta sem antes lhe arranjar algum fumo. Resignado,
tive que ir até o escritório e pegar um pedaço de fumo guardado justamente para
reuniões inesperadas com outras Lendas.
-
Sorte sua que eu ainda tinha um resto aqui – resmunguei, enquanto lhe entregava
o presente. – Agora você me responde ou eu te faço voar pela janela.
O
Saci pegou o fumo e acendeu seu cachimbo, ignorando a ameaça. Depois de alguns
momentos deleitando-se com o fumo que provavelmente ele se privara nos dias em
que estava em São Paulo, disse calmamente:
- Se
você me ajudar, Lobo, esta será a última vez que vai me ver. Você devia estar
comemorando também.
- Eu
não acho que a visita de um Saci seja motivo de comemoração – respondi enquanto
me sentava em outra poltrona. – Mas me livrar de um seria com certeza. O que
você quer?
-
Sair do país.
Eu
ri.
-
Você quer dinheiro?
- Não
– o Saci respondeu. – Eu preciso de um visto para entrar nos Estados Unidos, e
eles me negaram, você acredita?
Avaliei
o rapaz negro e perneta de cima a baixo e não consegui conter uma risada
discreta:
- Por
que isso não me surpreende?
O
Saci se enfureceu.
-
Você acha que eles estão certos, então? Acha?
Eu
simplesmente dei de ombros, sem nada a dizer, o que o deixou ainda mais
indignado.
–
Vocês estrangeiros são todos um bando de usurpadores arrogantes. Isso aqui ‘tá
cheio de lobisomens, vampiros, heróis com superpoderes e loucos comedores de
criancinhas – ele disse, usando os dedos para numerar cada ser não-humano que
vira nos últimos dias em São Paulo. - Agora, quando eu quero mudar de ares,
eles me negam! Isso é injusto!
- Só
porque eu tenho semelhantes na Europa não significa que eu seja estrangeiro,
não me coloque no meio deles – me defendi, perdendo a paciência. – Eu entendo o
que você quer dizer, eu também preciso enfrentar toda essa burocracia quando
preciso viajar a negócios. Mas por que você quer sair do país? Você tem estado
aqui sua vida inteira, não é?
O
Saci deu de ombros.
– Nós
estamos em guerra... Bem, quer dizer, eles
estão em guerra... Aqueles idiotas do outro lado do oceano e os americanos. Eu
quero investigar quanto tempo ainda temos até essa richa estúpida chegar aqui.
- Você
está querendo dar uma de espião? – perguntei, rindo. – Com certeza, um
Saci-Pererê em Times Square é uma maneira bem discreta de vigiar as Lendas
americanas.
- Eu
não quero espioná-los – o Saci replicou, irritado. – Quero entrar em contato
com eles. Saber o que os anciões estão aprontando e como os americanos estão
reagindo.
Eu
estava ouvindo as palavras do Saci, mas nada fazia sentido na minha cabeça. É
claro que estava ciente da eterna guerra das Lendas Anciãs contra as Lendas Americanas,
que nos acusavam de ter roubado o espaço deles, de ter trazido aberrações à
vida e tantos quantos outros motivos estúpidos uma Lenda possa imaginar. A
verdadeira razão desta guerra, entretanto, era a única verdadeira razão de
qualquer guerra, seja entre Lendas ou entre Humanos: vampiros e bruxos europeus
tinham uma grande influência nos “seus” Humanos, que passou a ser dividida com
as novas Lendas que foram conhecidas junto com a descoberta das Américas. Ninguém
gosta de dividir poder, portanto, as primeiras Lendas, ou Anciões, até hoje vem
lutando para acabar com as novas Lendas surgidas no Novo Continente, ou os
Novatos, como eles nos chamam. Todas as Lendas brasileiras sabem disso, mas
ninguém liga para essa guerra porque, na maioria dos casos, quando um Ancião
vem para cá, acaba vencido pela nossa falta de voltade de lutar contra eles.
Eles acham que nos dominam e, quando menos percebem, estão presos na nossa morosidade
e acabam criando raízes por aqui mesmo. Por isso, não via motivos para o Saci
se preocupar tanto com esta guerra estúpida, a não ser que estivesse
acontecendo algo que eu ainda não sabia.
- Por
que você está preocupado com o que acontece nos Estados Unidos? – insisti com
ele. – Aceite meu conselho, Saci, ninguém quer se meter nos problemas dos
outros. Você não vai conseguir visto para sair do Brasil porque isso iria
causar incômodo para muita gente. Desde que essa guerra começou, quinhentos
anos atrás, que as Lendas sabem que o melhor é não inventar de aparecer em
lugares onde os Humanos ainda não as conhecem.
- O
chupa-cabras fez isso – o Saci replicou, endireitando-se na poltrona.
- E
você lembra a confusão que foi? Fiquei sabendo que as autoridades não-humanas
de Porto Rico até hoje o mantém sob vigilância constante.
-
Isso não está certo – ele revidou, indignado. – Eu não vejo diferença nenhuma
entre a Cuca e algumas bruxas européias. E o Bicho-Papão? Tem Bicho-Papão no
mundo inteiro, além de vocês Lobisomens e aqueles Vampiros. Por que um saci tem
que ser condenado a ficar no Brasil? Nós temos que nos unir contra esses
Anciões, mas quem me garante que você não está do lado deles e por isso não
quer me ajudar?
A
mesma discussão de sempre. Como lobisomem, eu também era muitas vezes acusado
de ser um estrangeiro. Meus antepassados vieram da Europa, mas eu nasci aqui e
fui condenado à maldição do lobisomem sem ser mordido por outro semelhante,
como acontece com eles. Para os lobisomens de lá, eu sou um estrangeiro também.
O mesmo acontece com a Cuca e o Bicho-Papão. Mas quando se trata de uma guerra,
qualquer semelhança com o inimigo é desculpa para você ser tachado de traidor
ou algo parecido. Principalmente quando o inimigo está num ponto inatingível e
precisam de alguém para fingir que o final da guerra está caminhando para a
vitória. Há algum tempo que outras Lendas brasileiras vem me sondando,
procurando desculpas para que eu me decida de uma vez por todas se estou do
lado dos Novatos, ou dos Anciões. A verdade é que estava enrolando os dois
lados, tinha muito a perder se me tornasse inimigo das lendas originárias do
país onde moro, mas também não queria me tornar inimigo dos poderosos
lobisomens do outro lado do oceano. Essa história parecia que era só mais uma
tentativa de me sondar novamente, investigar qual o meu grau de influência com
os lobisomens americanos.
Infelizmente,
não pude descobrir as reais intenções do Saci, pois meu silêncio foi quebrado
pela velha música que todos já conhecem como predecessora
de más notícias tocando na televisão ligada no quarto. Com um pressentimento
ruim, dei as costas para o Saci e corri para o telejornal, olhando incrédulo
para a foto da garota que tinha saído da minha casa há algumas horas e agora,
segundo o que o repórter dizia, tinha sido assassinada num tiroteio dentro de
uma universidade.
Em
menos de um segundo, minha mente se esqueceu temporariamente do saci para
imaginar as milhares de implicações daquela notícia. Vanessa tinha saído daqui
carregando na bolsa um cheque assinado por mim no valor de cinco mil reais. Se
a polícia achasse o cheque na bolsa dela, meu nome rapidamente estaria
envolvido. Sebastião iria querer explicações sobre o que sua filha fazia com um
cheque que cobria quase um ano de salário dele, a polícia poderia concluir
rapidamente que ela me fazia visitas periódicas e pedir para investigar meu
apartamento, e eu teria que explicar o motivo de ter um quarto a prova de som e
cheio de correntes. O futuro não me parecia promissor para alguém cheio de
segredos a guardar e motivos suficientes para criar um escândalo quando a mídia
precisasse de um bode espiatório para esconder notícias mais importantes.
Precisei
sentar para recuperar o controle do corpo e nem percebi o Saci recostado no
batente da porta, olhando atentamente para a TV.
-
Bela garota – ele comentou. – Você a conhece?
Pulei
assustado quando ouvi a voz dele. Para as coisas piorarem, ainda tinha um
intrometido em casa.
- Sim
– o Saci concluiu com um sorriso no rosto –, você a conhece... Você a conhece e
agora teme que eles te achem por causa dela. O que você andou aprontando na
cidade grande, Lobinho?
Com a
insinuação, me recuperei imediatamente do mal-estar e me levantei num pulo,
agarrando o Saci pelo colarinho.
-
Isso não é da sua conta! E pare de me chamar como se nós fôssemos velhos
amigos.
De
olhos arregalados, o Saci levantou as mãos em sinal de arrependimento e esperou
até que eu o soltasse, em silêncio. Voltei a me sentar na poltrona em frente à
televisão, de costas para o Saci, e finalmente confessei:
-
Você está certo, Saci, eu conheço, ou conheci essa moça. Ela me ajudava nas
noites de lua cheia. Saiu daqui nesta manhã com um cheque meu. Se acharem
aquele cheque, alguém pode fazer perguntas ao meu respeito, e você sabe que
minha situação exige uma certa discrição.
Ficamos
em silêncio por algum tempo. Eu ainda estava perdido, tentando raciocinar uma
maneira de sair da enrascada em que me meti sem querer, enquanto o Saci elaborava
a barganha que me proporia a seguir:
- Eu
tenho meus contatos. Posso investigar essa história para você. Depois disso,
você me ajuda com seus amigos gringos.
Parei
para avaliar a proposta dele. Eu devia estar louco, ninguém em plena
consciência faria um trato com o Saci-Pererê, mas se meu nome aparecesse no
noticiário relacionado com a morte de uma prostituta, filha de um dos meus
funcionários, eu estaria muito encrencado. A reunião da tarde que fosse
cancelada, precisava voltar para Ribeirão Preto e preparar Mariana para o pior.
Se o Saci conseguisse ganhar algum tempo, tanto melhor.
-
Está bem, Saci – disse, resignado. – Espero notícias suas, e depois nós
conversamos sobre o visto.
O
Saci se conteve para não pular de alegria em respeito à minha visível
irritação. Já de volta à sala, eu estava com o celular à mão, berrando com a
funcionária da companhia aérea para conseguir antecipar minha passagem de
volta.
-+-+-+-+
Com
quatro horas de atraso, o avião finalmente conseguiu pousar em Ribeirão Preto.
Se demorasse um pouco mais nem teria precisado antecipar a viagem.
Provavelmente teria chegado mais cedo em casa se tivesse alugado um carro e
dirigido até aqui. Mas precisava manter meu papel de rico empresário e
fazendeiro, que chamaria muita atenção se preferisse viajar de carro quando podia
me exibir no precário aeroporto.
Felizmente,
Mariana estava me esperando. Oficialmente, ela era minha sobrinha, mas claro
que os laços de sangue que nos uniam já eram longíquos e eu nem saberia mais
qual palavra descreveria corretamente o parentesco entre nós. Seus pais haviam
morrido num acidente de carro, e eu e Ricardo providenciamos para que ela
ficasse sob a nossa guarda, para ocupar justamente o lugar de Ricardo quando a
hora dele chegasse. “Tio Ricardo”, como Mariana o chamava, acabou nos deixando
dois anos atrás, mas Mariana já vinha cuidando de mim nas luas cheias antes
disso. Eu tentava não me apegar a eles, mas era impossível. Nós éramos como pai
e filha, e só de encontrá-la me esperando já me trouxe um pequeno alívio, capaz
de me fazer sorrir depois daquele dia horrível.
Ela
não me fez nenhuma pergunta imediata sobre o adiantamento da viagem, e entramos
no carro para ela me levar para almoçar, ou jantar, devido ao horário. Pelo
caminho que seguíamos, logo concluí que estava me levando para minha
churrascaria preferida e agradeci metalmente pela sensibilidade dela. Um bom
pedaço de carne mal passada era tudo que o lobo faminto contido dentro de mim
precisava depois daquele dia.
Embora
agradecido, não pude deixar de notar o estranho silêncio no carro. Normalmente,
Mariana me contava sobre quase tudo que acontecera nos dias que eu estava
viajando e me enchia de perguntas sobre meu estado depois de uma lua cheia. Imaginei
que talvez o silêncio fosse devido aos problemas no escritório de arquitetura
que abrira com sua amiga depois que as duas se formaram, isso era uma das
poucas coisas que Mariana não gostava de dividir comigo. Depois de cinco anos, já
imaginava que elas ainda não estavam faturando os milhões que sonhavam na noite
da formatura. Se ela se abrisse comigo, lhe diria para ter um pouco mais de
paciência. Já havia perdido a conta de quantas Marianas e Ricardos tinha
acompanhado pelos anos para saber que, no final, eles sempre acabam dando um
jeito. Por outro lado, estava orgulhoso dela mostrar essa indepêndencia,
evitando me pedir mais dinheiro além do pontapé inicial para a abertura do
negócio delas. Assim como todos os meus sobrinhos anteriores, eu a criei para
ser responsável, não podia correr o risco de entregar minha maior fraqueza nas
mãos de um cabeça oca interessado apenas em shoppings e baladas.
-
Aconteceu alguma coisa? – resolvi investigar. – Você está tão quieta hoje.
- Não
– ela respondeu prontamente.
O
carro parou num sinal vermelho, e eu parei para observar Mariana. Eu a
conhecia. Ela estava bastante inquieta, batendo os dedos no volante, olhando
para o retrovisor, desviando os olhos para o painel, evitando me encarar, sem
saber se falava mais alguma coisa ou não. Esperei ela se decidir, até que
finalmente ela começou a balbuciar:
-
Houve um tiroteio em São Paulo... Você deve ter ouvido falar... Uma das vítimas
era a filha do Seu Sebastião... o jardineiro.
- É –
respondi. – Eu fiquei sabendo. Reconehci o rosto dela quando vi a foto na
televisão.
-
Este país está cada dia mais violento, não sei onde vamos parar.
Mariana
havia me dado a resposta padrão quando queremos mudar de assunto para esquecer
que vivemos numa guerra civil não oficial. Portanto, também acabei achando
melhor não comentar sobre o quanto conhecia Vanessa e nem que ela carregava um
cheque meu quando foi morta. Normalmente, nessas situações, a conversa deveria
ser direcionada para alguma novidade festejante, como um torneio inútil que o
Brasil ganhou em algum esporte ou um prêmio qualquer de uma figura qualquer que
ninguém sabe realmente quem é. Era a maneira mais fácil de nos fazer esquecer
um problema que todo mundo já desistiu de tentar solucionar. Mas eu estava
preocupado demais para me lembrar de algum assunto ameno, e Mariana não parecia
diferente. Ela podia estar abalada com a morte de Vanessa, mas eu podia
perceber que não era isso que a mantinha calada e pensativa durante todo o
percurso para o restaurante.
Quando
chegamos, um dos garçons já nos recebeu e nos levou para minha mesa preferida,
verificando se iria querer o mesmo prato de sempre. Enquanto esperávamos, nos
distraímos com a mesmas falas: o quanto a viagem foi cansativa e os aeroportos
estão despreparados, o quanto choveu na tarde anterior e uma boa parte das ruas
do centro de Ribeirão ficaram alagadas, o quanto o engarrafamento em São Paulo
está crescendo horrores, agora até fora dos horários de pico, etc. Era incrível
como, quase quinhentos anos de vida e ainda ouvia as mesmas histórias, apenas
as palavras se modernizavam.
O
garçom chegou trazendo nossos pedidos, nos serviu e começamos a comer sem mais
nenhum comentário na mesa. Saborei o primeiro pedaço de carne que meu corpo
desejava há horas, esperando que Mariana finalmente tomasse coragem para me
dizer o que quer que estivesse incomodando-a desde que a encontrei naquela
tarde. Eu a conhecia suficientemente bem para saber que logo ela falaria. E
realmente falou, me dando um belo susto assim que depositei os talheres no
prato.
-
Tio, eu tenho uma novidade.
Levantei
os olhos para vê-la mordendo os lábios, como fazia quando ainda era uma menina escolhendo
as palavras para me pedir um brinquedo caro.
- Eu
estou grávida.
Ela
soltou aquela bomba da maneira mais calma que podia, com a voz baixa e olhando
para os lados para se certificar que ninguém nos ouvia. Quando a ouvi, comecei
a repetir as palavras na minha cabeça, perguntando-me se tinha ouvido direito e
buscando inutilmente por algum significado diferente que aquela frase podia
conter.
-
Grávida? – foi a única coisa que consegui dizer, ainda tentando assimilar a
novidade.
Talvez
Mariana tinha imaginado que eu faria um escândalo. Bem, há apenas um século,
essa notícia me faria berrar e exigir a morte do safado que deflorou a minha
pobre sobrinha. Ainda era difícil me acostumar com todas essas mudanças
culturais, mas eu conhecia Mariana muito bem para saber que ela estava
instruída sobre esses assusntos. Claro que também não vou negar que fiquei surpreso,
mas ao invés de berrar aos quatro cantos, tentei manter a conversa num tom que
não chamasse a atenção das mesas próximas.
– Mas
como? Quero dizer... Você sempre soube se cuidar... Pelo menos eu imaginava que
sim...
Foi
só então que percebi como aquela situação era embaraçosa. Mariana foi criada
por dois “tios”, mas com uma série de mulheres encarregadas de ensinar-lhe
coisas que eu, mesmo depois de séculos, ainda não era capaz de discutir com uma
adolescente. Acho que eu até a compreenderia melhor se ela ainda tivesse quinze
anos, e alegasse estar loucamente apaixonada. Mas Mariana nunca nos deu este
tipo de problema, era sempre discreta com seus namorados. E agora, depois de
praticamente independente financeiramente e com uma idade onde todos esperam
que uma mulher saiba como evitar filhos, ela me aparece grávida, sem eu nem
mesmo saber que ela estava envolvida com alguém.
– Quem
é o pai dessa criança? – perguntei. Não estava pensando em lavar a honra da
minha sobrinha com sangue, como faria séculos atrás, mas tinha o direito de pai
de saber quem andava com a minha filha.
Ela
refletiu por alguns segundos antes de me responder:
-
Você acreditaria se eu dissesse que é o Boto Cor-de-Rosa?
Se eu
não fosse um lobisomem, minha primeira reação seria rir, ou gritar alto com
minha sobrinha por tentar me fazer de bobo. Mas eu sabia que o Boto Cor-de-Rosa
realmente existia, e realmente seduzia as mulheres à noite para desaparecer no
dia seguinte. Só não imaginava que Mariana podia ser tão ingênua quanto as
ribeirinhas que acusavam o Boto de ser o pai de seus filhos.
-
Querida, isso é uma lenda que as mulheres usavam para explicar uma gravidez
fora do casamento – expliquei, com a esperança de aquilo fosse só uma
brincadeira. – Você não precisa disso, sabe que eu a apoiaria sob quaisquer
circunstâncias.
- Mas
eu estou dizendo a verdade – ela insistiu.
Agora
eu realmente queria lavar a honra da minha sobrinha com sangue!
- Não
me diga que aquele caboclo desmiolado chegou perto de você! Eu disse para ele
não se meter com você... que você era como uma filha pra mim...
-
Ah... Então você conhece mesmo ele? Até o avisou para não se aproximar de mim.
Fui
obrigado a admitir, com um silencioso assentimento com a cabeça. Mariana também
ficou em silêncio, me encarando de forma inquisodora. O que ela queria saber de
mim? Era eu quem tinha milhões de perguntas para ela.
– Como...
Como você o conheceu? O que ele fez com você? De todas as pessoas no mundo,
jamais imaginaria que você cairia na
lábea dele.
-
Tio! – ela exclamou com um sorriso, esticando uma mão até o meu braço para tentar
me acalmar. – Eu não sou nenhuma donzela inocente enganada por um rapaz
sedutor. Você não precisa defender minha honra.
-
Exatamente por isso é que eu não entendo como você se deixou enganar por aquele
patife.
- Eu
sei que ele não vai casar comigo e nem que viveremos felizes para sempre. Eu já
sabia de tudo isso antes de me envolver com ele – ela respondeu decidida, o que
me assustou um pouco.
- E
você acha que está tudo bem assim? Que você vai ter esse filho sozinha e todo
mundo viverá feliz para sempre? – Eu já estava ficando impaciente com aquela
conversa, me remexendo na cadeira e gesticulando como um louco para compensar
os berros que tinha que conter. – Ele por acaso contou que as Lendas estão em
guerra há séculos?
Ela
me respondeu com irritados olhos estreitos.
-
Agora você me conta isso, não é? – Recuei na cadeira, levemente assustado com a
reação dela. – Talvez, se eu soubesse que era sobrinha de uma peça chave de uma
guerra que eu nunca ouvi falar, eu teria mais cuidado ao encontrar outras
Lendas.
Respirei
fundo, amaldiçoando esternamente aquela merda de Boto por ter dado com a língua
nos dentes. Por isso, e por ser reposnsável pela chegada de um novo sobrinho
que ainda poderia me trazer muitos problemas. Havia um motivo para eu ter
deixado Mariana alheia aos fatos que cercavam a guerra entre as lendas, mas não
podia falar disso num lugar público.
- Não
vou discutir isso aqui – respondi para ela, irritado.
Nós
deixamos a churrascaria e voltamos para casa em silêncio. No caminho, lembrei
que ainda precisava alertar Mariana das possíveis consequências com a morte de
Vanessa. Mas então constatei novamente que ela estava grávida, e que seu bebê
seria o filho de um Novato, criado por um Lobisomem. Não sabia até que ponto
essa gravidez tinha a intenção de me atingir; confiava no Boto menos que
confiava no Saci, e agora parecia que minha vida dependia dos dois. Se não
estimasse tanto Mariana, o certo seria realmente expulsá-la de casa e renegar
essa criança como se ainda vivessemos no século passado. Mas Mariana não sabia
de nenhum detalhe sobre a guerra, não podia culpá-la por sua ignorância. Por
outro lado, agora também não podia mais confiar a ela os últimos acontecimentos
em São Paulo, pelo menos até saber exatamente qual era a relação dela com o
Boto.
Mal
paramos o carro, e Maria, a governanta, apareceu na porta antes que entrássemos
na casa.
- Boa
noite, Sr. Adalberto. O senhor lembra daquele rapaz que vinha sempre aqui, parecido
com o Tarcísio Meira quando era novinho?
Estreitei
os olhos para Mariana. Um rapaz que se parecia com um galã de novela de anos
atrás, era óbvio que era a forma que o Boto assumia para a Maria.
-
Bem... – Maria continuou. – Depois daquela história da Marina dizer que ele é o
pai da Catarina, eu sei que o senhor o proibiu de voltar aqui. Mas hoje...
- O
que aconteceu hoje? – interrompi, impaciente. Ao mesmo tempo, Mariana pareceu
se espantar ao descobrir que não era a primeira pessoa naquela casa a ter algum
tipo de relação com o Boto. Interessante... Quer dizer que ele lhe contara
tantas coisas, mas havia esquecido de mencionar a Catarina.
-
Bem... – Maria continuou, desviando os olhos de mim. – É que ele apareceu aqui
hoje, e parecia urgente. Me desculpe, Seu Adalberto, mas eu acabei deixando ele
entrar e ficar esperando o senhor no escritório, antes que a Marina o visse e
acabasse fazendo o mesmo escândalo daquela outra vez.
No
primeiro momento eu quis estrangular a Maria por ter deixado o canalha sedutor
que enganou a inocente da minha filha entrar, mas depois acabei agradecendo ela,
realmente foi melhor deixá-lo escondido no escritório. Se Marina descobrisse o
pai de sua filha ali, provavelmente teria mais um problema para resolver
naquela noite. E eu já estava farto de problemas por um dia, especialmente
problemas envolvendo Lendas e Humanos de quem eu dependia.
Segui
direto para o escritório, para encontrar um caboclo recostado preguiçosamente
numa poltrona.
-
Mariana já me contou a novidade – disse. – Só espero que sua visita não seja
para me pedir a mão dela em casamento.
O Boto
me avaliou com o olhar, mas não disse nada. Estava tentando avaliar se o
silêncio dele era alguma espécie de ameaça, mas ele não parecia interessado em
falar sobre a minha sobrinha.
-
Você a usou para me obrigar a me unir a vocês, não é?
Ele
continuou me encarnado em silêncio, um leve sorriso debochado no rosto. Quando
pensei que não consegueria mais conter a vontade de trucidá-lo, ele tirou um
envelope do bolso e o estendeu para mim.
-
Tome. Eu só vim aqui hoje porque o Saci me pediu para entregar isso aqui.
Desconfiado,
tomou o envelope das mãos dele e o abri. Era a mesma folha de cheque que
deveria estar dentro da bolsa de Vanessa. Senti o sangue gelar.
-
Como ele conseguiu isso?
O
Boto deu de ombros.
-
Você conhece o Saci, ele tem seus próprios métodos. Eu não me meto nisso.
-
Suponho que ele virá me exigir cumprir minha parte no trato.
- Não
sei o que vocês combinaram – o Boto respondeu, estendendo as mãos para frente,
indicando que não tinha nada mais a ver com aquilo. – Eu sou só o garoto das
entregas.
Mas aquilo
não me convencia.
- E onde
a Mariana entra nisso? Por que você a envolveu nessa história?
O
Boto deu um sorriso cínico.
-
Está bem! Eu admito que a procurei pensando numa maneira de prendê-lo a nós.
Mas o Saci foi muito mais eficiente. Você sabe que ele tem como fazer esse
cheque aparecer no meio do inquérito policial caso você não coopere.
- Ele
não me pediu para cooperar com você – eu o desafiei. – Se vocês
pretendem mesmo entrar nessa guerra, é melhor conhecerem bem seus aliados.
- Tudo bem... – O Boto se levantou indicando que estava
prestes a sair. – Não me interessa o que o Saci lhe disse. Ele nunca fala a
verdade mesmo. – Antes de se virar para porta, entretanto, deu um passo em
minha direção sussurrou, como se estivesse contando um segredo: - Se esse
cheque aí não o prende a mim, lembre-se que nós teremos um parente em comum em
breve.
Sabia que ele ia me ameaçar, mas a idéia de não conseguir
evitar aquela chantagem me deixou sem ação por um momento.
- Você deu um jeito de trazer uma filha minha para o seu
lado – o Boto continuou. – Eu só respondi na mesma moeda. – E deu as costas em
direção à porta.
Aquilo era ridículo. A vinda da Catarina para minha casa
fora uma coincidência, mas eu sabia que ele jamais acreditaria em mim. Devia
ter me livrado da Marina e procurado outro contador quando descobri a verdade
sobre a filha dela. Mas agora já era tarde demais, teria que pagar o preço por
ter mantido minha palavras com elas. O mais absurdo de tudo é que eu sabia que
o Boto não ligava para os seus filhos, jamais teria pensando em manter uma
filha dele como refém se quisesse ameaçá-lo.
- Hunf! Como se você se preocupasse com a Catarina! Ela é
uma menina bonita, inteligente, e você nem ao mesmo pensou em visitá-la e saber
se ela estava bem depois que a descobriu aqui! – gritei para ele, inconformado
com aquela situação.
O Boto nem se dignou a virar novamente para me encarar,
apenas ajeitou o chapéu e respondeu:
- É claro que ela é bonita e inteligente. Ela é minha filha. Seu futuro “netinho” também
será assim, já que tem os meus genes.
Para a sorte do Boto, a porta bateu antes que eu
conseguisse jogar qualquer objeto pesado na direção dele.
Embora a primeira noite de lua cheia já tivesse passado,
resolvi me trancar no porão naquela noite mesmo sabendo que o lobo não seria
tão forte desta vez para tomar conta dos meus sentidos. Os acontecimentos em
São Paulo e as novidades de Mariana, por outro lado, eram suficientes para me
fazer perder a cabeça. Precisava me isolar de tudo e esperar a lua minguar para
voltar a pensar claramente e arranjar uma maneira de me livrar de qualquer
comprometimento com uma guerra. Precisava entender o pedido do Saci e o que o
Boto estava planejando. Por que tanto interesse em me conquistar para o lado
deles? Por que tanto interesse numa guerra que nunca chegara propriamente ao
Brasil? Alguma coisa estava por trás do assassinato de Vanessa e da gravidez de
Mariana, eu só precisava encontrar e juntar as peças deste quebra-cabeça.
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