O Vampiro de Curitiba


Por Marcelo Rodrigues, um vampiro


A primeira vez que eu vi a Catarina, eu sabia que ela seria a minha perdição. Não, não foi amor à primeira vista. Eu odiava aquela carioca que insistia em me irritar com o sotaque carregado de esses. Tudo no Rio de Janeiro era melhor que em Ribeirão. Os cariocas eram melhores que os paulistas. O Flamengo era maior que o Corinthias. Hunf! Saudade daquela época que eu tinha estas preocupações dos Humanos e me incomodava com futebol.

Nós estudávamos na mesma escola, e ela era a única que também ficava quase uma hora no ônibus que nos levava para casa. Ou seja, depois que todo mundo era deixado em casa, eu ainda tinha que ouvi-la contando vantagem sobre sua vida no Rio por mais uma eternidade. É claro que com o tempo eu fui me acostumando com aquela garota tagarela que não me deixava em paz ouvindo minhas músicas; e acho que passei a considerá-la minha amiga na semana que ela ficou doente e não foi para a escola, me obrigando a agüentar o caminho de volta para casa sozinho. Eu pensei que seria uma benção, mas foi um inferno agüentar a viagem em silêncio, sozinho no ônibus; e lembro até hoje do alívio que senti quando, na semana seguinte, ela voltou a sentar do meu lado. Descobri que apesar da tagarelice, eu gostava e até sentia falta da companhia dela. Não sei como paramos de nos falar. Acho que foi o vestibular. Ela passou na FUVEST e foi estudar numa cidade vizinha, e eu vim para Curitiba. E claro, eu fui mordido por um vampiro.

Catarina estava enterrada nas lembranças da minha vida humana e só ressurgiu para me colocar numa enrascada ainda maior que andar com vampiros. Foi num final de ano que a vi caminhando em pleno calçadão da Rua XV. Eu tinha recém acordado e estava morrendo de fome, mas ainda era cedo para procurar uma vítima e me alimentar sem ser percebido. A rua estava movimentada com as lojas abertas até mais tarde por causa do Natal, e eu pensei que se desse meia volta conseguiria me esquivar sem que ela me notasse. Como sempre, Catarina foi mais rápida que eu.

- Marcelo?! É você mesmo? – alguém, claro que eu sabia que era ela, me chamou puxando pela camiseta,

Tive que parar e virar. Ela estava diferente, mais velha. Quantos anos já tinham se passado mesmo? Talvez uns dois ou três desde que eu me mudara para Curitiba. Não, cinco anos. Eu deixei Ribeirão com dezessete, fui transformado em vampiro com dezoito, e agora a Catarina devia estar com uns vinte, vinte e um anos. Ela estava ainda mais bonita do que eu me lembrava.

- Catarina! – Fingi uma cara alegre por revê-la. – O que você está fazendo em Curitiba?

Mas ela nem pareceu me ouvir, me deu um abraço apertado. Por um momento senti saudades da minha antiga vida, do calor que eu deveria sentir com o corpo dela em volta do meu. Depois ela se afastou e me olhou de cima a baixo, provavelmente também reparando em como eu devia ter mudado.

- O que você está fazendo em Curitiba? – ela repetiu a minha pergunta. – Você desapareceu! Nunca mais mandou notícias. Não escreve, não entra mais no MSN, apagou seu Orkut...

- Ah, você sabe... Tenho andado ocupado com umas coisas aí... – respondi, tentando desviar o assunto. – E você? Jamais pensei que encontraria você aqui, nessa confusão de fim de ano!

Catarina sorriu e desandou a falar, exatamente como eu me lembrava dela.

- Eu estou na casa de uma amiga da faculdade. Nós moramos juntas na mesma república e ela me convidou para passar uma semana aqui para conhecer a cidade. O nome dela é Patrícia, você vai adorar conhecê-la. Ela entrou ali na C&A para comprar uma bolsa, mas eu vi você passando e acabei me perdendo dela. Do jeito que está o movimento na loja, ela ainda deve estar na fila do caixa, assim que ela sair eu a apresento para você!

Ela deve ter falado mais um monte de coisas, mas meu cérebro não conseguia processar todas as palavras que entravam pelos ouvidos. Eu estava morrendo de fome, e a única coisa que conseguia lembrar era do Nelson, o vampiro que me mordeu, comentando como o sangue de uma virgem era muito mais suculento que o de qualquer outra mulher. Bem, eu ainda não tinha tanta experiência quanto ele neste quesito, mas comecei a reparar na Catarina enquanto ela desandava a falar. O sangue dela não tinha nenhum cheiro especial, e ela também não tinha mais aquele jeito de menina. Era uma mulher, não sei explicar como, mas dava para perceber só de olhar para ela. Pensar nisso me deu uma raiva irracional do idiota que ousou tocar nela, e tudo o que queria era o sangue do canalha.

- Você está namorando? – perguntei, interrompendo-a.

Ela parou de falar e ficou me olhando meio sem jeito. Eu me senti um idiota, sem ter pensado no quanto aquela pergunta podia ser interpretada erroneamente. Se eu não fosse um vampiro, até podia estar procurando uma chance de sair com minha ex-melhor amiga. Mas naquele momento, tudo o que eu queria era mais notícias do cara que poderia ser minha próxima refeição.

A Catarina, entretanto, interpretou a pergunta da maneira que qualquer Humano faria.

- Eu... errr... não. Uau! Por que você está me perguntando isso? – As bochechas dela ficaram vermelhas enquanto ela me respondia.

Eu também teria ficado vermelho, se ainda houvesse algum calor em meu corpo.

- Ah, curiosidade, você sabe... – respondi, me esforçando para parecer indiferente. – Faz tanto tempo que a gente não se fala. Você ainda está na USP? Já se formou? Está trabalhando?

A cara de boba assustada dela voltou ao normal, e ela me respondeu:

- Vou me formar no ano que vem, estou procurando estágio. E você? Eu tentei te encontrar pelo Orkut um tempo atrás, mas você sumiu!

Gostei de ouvir que ela esteve me procurando.

- Eu larguei da faculdade. Direito não é pra mim – expliquei. – Estou trabalhando com uns caras que conheci aqui, promovendo bandas e tal. Praticamente troquei o dia pela noite.

De certa forma, não menti em nada.

- Puxa! Você mudou mesmo! – Ela estava com os olhos bem arregalados quando disse isso, acho que ela tinha outra imagem de mim.

Nós ficamos parados, um na frente do outro, no meio das pessoas que andavam quase que desgovernadamente atrás dos seus presentes de Natal. Não tinha mais nada para falar pra ela que não colocasse em risco minha nova posição. Ela pareceu ter ficado tão surpresa com minha mudança de carreira que acho que também ficou sem saber o que dizer. Entretanto, nenhum dos dois estava com vontade de se despedir e dar meia volta para seguir seus próprios caminhos. Foi quando a amiga dela apareceu.

- Ah, encontrei você! Esta loja está um inferno! Nunca vi tanta gente empilhada num lugar só. Odeio fazer compras em época de Natal.

Ela parou de falar quando notou que a Catarina não respondeu, nem se virou para ela.

- Catarina? Você me ouviu? – ela falou mais alto, pegando a Catarina no braço.

Catarina pareceu sair de uma espécie de transe, virou o rosto para a amiga e me apresentou para ela.

- Paty! Esse é o Marcelo. A gente estudou junto em Ribeirão, mas agora ele mora aqui em Curitiba.

A Paty, ou Patrícia, sorriu para mim e me cumprimentou com a cabeça, dizendo que nós precisávamos sair uma noite dessas, enquanto a Catarina ainda estivesse na cidade. Terminou que eu acabei passando o número do meu celular para elas e duas noites depois nós combinamos de sair com mais amigos da Patrícia. Nos encontramos mais uma ou duas vezes depois disso. Foi uma semana legal, apesar do inconveniente de ter que esperar até o final da noite para beber um pouco de sangue. Antes de voltar para Ribeirão, Catarina me deixou o número do seu celular, e-mail e MSN para a gente voltar a conversar, mas claro que eu não entrei mais em contato com ela. O Marcelo que ela conheceu morreu no dia em que fui mordido, era mais prudente que ela não voltasse a me encontrar.

Mas é claro que quando eu falo da Catarina as coisas são do jeito que ela quer, e não do meu. Duas semanas de silêncio depois, eu recebi um torpedo. Tinha esquecido que havia deixado o número do meu celular com ela.

“O único conselho que recebi do meu pai foi: ‘nunca confie em vampiros’.

Agora entendi por que você sumiu.

Obrigada por não ser um vampiro comigo!”

Eu fiquei olhando para o celular por um tempo, até ter a presença de espírito para excluir aquela mensagem imediatamente. Catarina sabia que eu era um vampiro, mensagem recebida. Mais ninguém precisava saber disso.

Mas a questão era: como a Catarina concluiu que eu era um vampiro? Eu podia até enumerar uma lista de ações que a fizeram desconfiar de mim, como aparecer apenas depois do sol se pôr, não gostar do cheiro do alho, não ter comido e fingido beber enquanto estava com ela. São comportamentos óbvios, mas a Catarina é uma Humana, não deveria acreditar em Lendas. Ela até era meio supersticiosa na escola, odiava os canaviais quando estavam altos, dizendo que eles podiam esconder de tudo e também vivia contando o calendário para saber quando era noite de lua cheia. Eu acabava sempre tirando sarro dela por causa destas coisas, e dizia para não se preocupar porque era tudo crendice, e ela me olhava séria e depois ria, mostrando a língua, dizendo que também só estava brincando comigo.

Outro aviso de mensagem me fez acordar das indagações. Era a Catarina de novo:

“PS: Se precisar de mim para qualquer coisa (menos sangue), você sabe como me encontrar!

;)”

Minha primeira reação foi sorrir ao descobrir que ainda tinha uma amiga com quem contar se um dia precisasse da ajuda de um Humano. A segunda, foi continuar indagando como alguém podia ter tanta certeza que vampiros existem a ponto de me descobrir.

Os meses passaram e eu acabei deixando de dar importância a esse encontro com a Catarina aos poucos. Eu era um vampiro, e sentia que me importava cada vez menos com qualquer menção à minha antiga vida como Humano. Não gostava da companhia deles, a não ser quando sentia fome, enquanto os demais vampiros do bando do Nelsinho me acolhiam como um irmão.

Só voltei a pensar novamente nela sete meses depois, quando vampiros que não eram de Curitiba nos convocaram para uma reunião. Bem, se é que ser seqüestrado e ameaçado com água benta pode ser considerado como uma convite para uma reunião. Foi a primeira vez que encontrei vampiros mais velhos que o Nelson, alguns pareciam ter nascido antes mesmo do Brasil ser descoberto. Chegaram até a citar o Conde Drácula... e mais alguma coisa sobre como ele ficaria furioso comigo se eu falhasse. Parece que ele é mesmo o chefão entre nós, vampiros, mas felizmente continua morando na Transilvânia. Pelo que eu consegui entender (estava prestando mais atenção ao vidro de água benta que usavam para me ameaçar que na conversa em si), havia uma guerra entre as Lendas. Lendas da Europa não gostaram da concorrência americana e iniciaram uma guerra contra outras Lendas, principalmente dos Estados Unidos. E pelo que entendi, isso já vinha desde a época dos descobrimentos. Só que agora, os vampiros e lobisomens – que até então estavam neutros, pois têm semelhantes em ambos os lados – parecem ter entrado na disputa também. Não sei quem começou, mas aposto que os vampiros que me seqüestraram só entraram nessa guerra para ficar contra os lobisomens. Só que havia um problema: os lobisomens e vampiros brasileiros não eram inimigos. Claro, a gente costuma se xingar de vez em quando, mas nada sério a ponto de eu me preocupar em atacar uma Lenda que pode ficar até dez vezes mais poderoso que eu na lua cheia só porque o Conde Drácula está entediado e resolveu brincar de general.

Mas o problema não era só esse. Como toda história envolvendo Lendas, alguma bruxa, de algum lugar, tinha soltado uma profecia:


Uma guerra que começou nos oceanos,
Levando Anciões para a terra onde o pecado nunca existiu,
Fazendo o Lobo se unir aos inimigos pelo filho de um deles.
O filho de um Novato, criado por um Ancião
Que se transformará na Lenda que acabará com todos nós.


Quando terminou, o vampiro que recitou a profecia em tom solene, ficou olhando para mim, esperando que eu tivesse alguma reação surpreendente.

- E então? – ele insistiu, vendo que eu não falava nada. – O que isso significa?

Eu olhei em volta. O bando de vampiros estrangeiros esperavam atentamente por uma resposta. Os vampiros que andavam comigo estavam igualmente surpresos.

- Eu nem sabia que vocês estavam em guerra – respondi, depois de muito pensar. – Por que vocês acham que eu tenho alguma coisa a ver com isso?

Os vampiros mais velhos se entreolharam, desconfiados. Nelson, então, levantou a voz:

- Ele ainda é uma criança, não faz nem dez anos que está transformado. Por que vocês acham que ele tem alguma relação com esta profecia?

O mais velho entre os mais velhos franziu as sobrancelhas para o Nelson.

- Você deixa um espião do Lobisomem entrar no seu bando e ainda o defende? É por isso que não conseguimos avançar nossa frente no Brasil. Estamos cercados de incompetentes aqui!

Se o Nelson pudesse ficar mais branco do que já era, com certeza tinha empalidecido. E se meu coração ainda batesse, com certeza tinha saído pela boca. Que história era essa de que “eu” era o espião do Lobisomem?

- Ei! – tentei me defender. – Eu não sei do que vocês estão falando, mas eu não conheço nenhum lobisomem, eu juro!

Nelson e o outro vampiro, chefe dos estrangeiros, olharam para mim exasperados.

- Tá, tá... Eu já vi um ou outro lobisomem por aí... Mas nunca conversei com eles. Muito menos sou amigo deles!

O vidro de água benta parecia cada vez mais assustador acima de mim. Não que eu já tinha sido queimado com água benta antes, mas depois que você é transformado em vampiro, você consegue sentir a ameaça cada vez que se aproxima de uma fonte benzida. Não queria aquilo na minha pele de jeito nenhum.

Mas os vampiros que me seguravam não estavam interessados no que eu queria. Vi a garrafinha sendo inclinada para baixo e fechei os olhos para esperar pela primeira gota que me queimaria.

- Esperem um pouco! - A voz do Nelson soou como anjos vindo me salvar. - O que o faz acreditar que o Marcelo é um espião? – ele perguntou para o vampiro-chefe.

- Descobrimos que ele freqüentava a casa do Lobisomem quando ainda era Humano.

- O quê?! – eu e Nelson exclamamos ao mesmo tempo.

- Eu mal vivi um ano em Curitiba como Humano – tentei me explicar. – Vocês devem ter me confundido com outra pessoa.

O vampiro me encarou incrédulo.

- O Lobisomem não vive em Curitiba.

Meus olhos se arregalaram. Se o Lobisomem que eles se referiam não morava em Curitiba e eu o conhecia, ele só podia estar falando de alguém que conheci ainda em Ribeirão Preto. Tentei relembrar da minha vida como Humano, tinha alguns amigos em Ribeirão que moravam na zona rural, e ia na casa de vários deles. Uma fazenda é o lugar perfeito para um lobisomem se esconder nas noites de lua cheia. Conclusão: eu conhecia um lobisomem e não sabia.

A questão era: quem era o Lobisomem? E: como conseguiria convencer os vampiros que eu não sabia disso?

- Olha... é sério – continuei. – Se eu conheci esse lobisomem, eu não tinha a mínima idéia de quem ele era. Eu não sabia que lobisomens e vampiros existiam até ser transformado.

- Ele tem razão – Nelson veio ao meu socorro mais uma vez. – Humanos não acreditam em Lendas. E como o Lobisomem ia adivinhar que ele seria transformado em vampiro aqui em Curitiba para mandá-lo para cá pensando em nos espionar?

Os vampiros estrangeiros pareceram refletir por alguns instantes.

- Você pode ter razão – o mais velho deles anunciou para o Nelson. – Neste caso, nós podemos aproveitar a relação que ele tem com o Lobisomem para nos aproximarmos dele. Precisamos descobrir o que ele está aprontando, e como isso se relaciona com a profecia.

Nelson ficou quieto, pensando.

- Sim – anunciou depois. – Ele pode se infiltrar na casa do Lobisomem pedindo asilo ao algo assim. E nos mandar informações periodicamente.

- Um lobisomem daria abrigo a um vampiro assim, tão facilmente? – o estrangeiro duvidou.

- Sim – Nelson respondeu, com o canto da boca levemente levantado em deboche. – Felizmente, os lobisomens brasileiros são tão incompetentes quanto os vampiros.

O outro vampiro estreitou os olhos para o Nelson, mas depois, com um gesto de cabeça, ordenou ao seu bando para me soltarem. Foi um alívio estar fora do alcance da água benta, e só então eu pude raciocinar direito. Resumindo: eu fui escolhido para ser um espião dos vampiros, dentro da casa do Lobisomem, e claro que ninguém sequer pensou na hipótese de perguntar o que eu achava disso.

Algumas horas depois, jogaram todos do meu bando na frente do portão do Cemitério Municipal. Nelson estava junto e, sem que os outros percebessem, me puxou pelo braço e sussurrou no meu ouvido:

- Não se preocupe com esses gringos. Siga o plano, se infiltre na casa do Lobisomem e, uma vez ou outra, mande notícias. Com o tempo eles vão entender que ele não tem nada a ver com essa guerra que eles inventaram e desistem de você.

Eu voltei o olhar para ele, em dúvida, mas a única coisa que vi foi uma revoada de morcegos, cada um a procura da sua própria janta antes que o sol nascesse.  Eu estava enjoado demais para pensar em sangue, sentei no meio fio da calçada, pensando em tudo que havia aprendido aquela noite sobre a guerra entre as Lendas fora do Brasil. Ainda não conseguia acreditar que Adalberto Ferreira era um lobisomem. E não apenas um lobisomem qualquer, mas O Lobisomem – o mais antigo, e por isso o mais poderoso, lobisomem conhecido no Brasil.

“O plano” era simples. Eu deveria voltar a Ribeirão, procurar pelo Seu Adalberto chorando desesperado por ter sido vítima de um vampiro e não saber o que fazer. A idéia era eu conquistar a confiança dele, me tornar uma espécie de braço direito e vasculhar todas as relações dele com Lendas brasileiras e estrangeiras. Descobrir se, como os demais lobisomens do resto do mundo, ele tinha se aliado aos “Novatos” ou se ainda era leal as “Lendas Anciãs”, detentoras dos bons costumes e mais algum desses papos de velho.

Na verdade, tudo começou por causa dessa porcaria de profecia. Já fazia uns cinqüenta anos que ela existia, mas os bruxos que trabalhavam na sua interpretação demoraram alguns anos para se tocar que “o lugar onde o pecado nunca existiu” era “do lado de baixo do Equador”. Este detalhe só foi desvendado quando a profecia foi ouvida pelo capitão do Holandês Voador, que lembrou instantaneamente dos discursos proclamados nas primeiras invasões holandesas e francesas na América do Sul – invasões, aliás, que geraram toda a mistura entre as Lendas do Velho e Novo Mundo que os “Anciões” tanto odiavam.

A própria profecia afirmava o que os Anciões sempre diziam dos Novatos, disseminadores de abominações e maus costumes, e ainda acusava um “Lobo” de traição. Para os vampiros, era óbvio que o traidor que se uniria aos Novatos era um lobisomem, porque era um lobo e porque eles sempre procuram um motivo para implicar com os lobisomens. Bem, “O Lobisomem” que morava “no lugar onde o pecado nunca existiu” era nada mais, nada menos que um dos fazendeiros mais ricos de Ribeirão Preto, Adalberto Souza Ferreira.

“A Catarina!”

Foi quando eu me lembrei dela. Era na casa da Catarina que eu ia estudar sempre que estava pendurado em Matemática ou em Física. Só que a mãe da Catarina era secretária do Lobisomem, e as duas moravam na casa dele. Por isso aqueles vampiros idiotas achavam que eu tinha alguma ligação com ele.

Uma enxurrada de fatos e lembranças daquela época passaram pela minha cabeça. Estava claro como a Catarina tinha concluído que eu era um vampiro. Se ela morava com um lobisomem, acreditar na existência de outras Lendas era normal. E ela também havia me dado outra informação: “O único conselho que recebi do meu pai...” A Catarina nunca tinha me falado do pai dela antes. Como ela e a mãe dela eram do Rio de Janeiro, eu sempre imaginei que os pais dela tinham se separado e ele devia morar no Rio. Mas agora, sabendo do Lobisomem e da familiaridade que ela tinha com as Lendas, e que o pai dela odiava vampiros, só havia uma conclusão: a Catarina era filha do Lobisomem!

Isso estava me deixando apreensivo. A profecia também falava do filho de uma Lenda. E pior... que esse filho acabaria com todas as Lendas – ou ao menos com as Lendas Anciãs, dependendo de como você interpretar a profecia. Por isso os vampiros queriam notícias do Lobisomem... Para descobrir qualquer informação sobre o final da profecia, sobre o filho de uma Lenda que também se tornará uma Lenda e “acabará com todos nós...” O plano deles era matar este filho porque, afinal, profecias só são feitas para colocar o herói da história em perigo.

O ruído de pneu cantando de um taxi que acabava de arrancar da frente do cemitério me chamou atenção e olhei para frente. A Loira do Taxi tinha acabado de assustar mais um taxista da cidade, trazendo-o até o Cemitério Municipal e depois sumindo de dentro do carro. Ela atravessou a rua, caminhando até mim, e me ofereceu um cigarro quando alcançou o meio-fio.

- Você sabe que eu não fumo – respondi, seco.

- Ui! Parece que alguém ainda não tomou sua dose diária de sangue hoje – ela caçoou. Sentando-se do meu lado, continuou: - Você está com cara de quem está precisando de um cigarro.

- Se eu já não estivesse morto, quem sabe – respondi com um suspiro.

Ela começou a fumar, sentada do meu lado, quieta. Como eu também não disse nada, chegou a hora dela perguntar:

- E então, você vai me contar o que aconteceu ou vai me deixar morrendo de preocupação?

A Loira do Taxi era minha melhor amiga desde que fui transformado. Acho que ela meio que me adotou como um filho, ou ao menos um sobrinho querido, e volta e meia aparecia para saber se eu estava bem, se já tinha me habituado a minha nova vida de vampiro. Eu não tinha outra alternativa se não contar tudo o que havia acontecido esta noite.

- Parece que você não tem outra opção se não voltar para sua terra... – ela concluiu, depois de uma longa tragada no cigarro. – O que você vai fazer com a sua família? Vai aparecer para eles?

- Não – respondi imediatamente. – Não tem como eu voltar para casa e esconder que sou um vampiro. Eles vão continuar achando que eu não quero mais falar com eles.

- Você vai ter que tomar cuidado para não esbarrar em nenhum conhecido – ela pontuou, genuinamente preocupada.

Eu assenti com a cabeça. Ela tragou o cigarro mais uma vez, ficou em silêncio, meditando e olhando para o céu nublado. Depois de uns instantes, afirmou:

- Ao menos você não precisa se preocupar com essa sua amiga. A profecia não pode ser sobre ela.

- Por que não? – Me virei para ela, interessado.

- A profecia fala do filho de um Novato – ela respondeu, confiante. – Se a sua amiga é filha do Lobisomem, não é ela.

- Você tem razão – respondi, um pouco mais animado. A idéia de trair a Catarina não me agradava.

Ela me examinou por alguns instantes e sorriu.

- Boa sorte em Ribeirão Preto – disse. – E não me leve a mal, mas espero que você não encontre nada de útil para esses vampiros gringos.

- Por quê? – Estranhei a Loira do Taxi se importar com os problemas dos vampiros.

- Oras – ela respondeu, a expressão voltando a ficar séria. – Se eles conseguirem trazer essa guerra para o Brasil, nós seremos inimigos.

Foi a primeira vez que me toquei disso. Uma guerra entre Lendas Anciãs e Novatas, no Brasil, seria uma desgraça. Havia Lendas de todos os tipos aqui, não estávamos separados por um oceano. A Loira do Taxi era minha única amiga desde que me transformara em vampiro, o pai da Catarina era um lobisomem... Eles estavam do meu lado, eram palpáveis... Como poderiam, de uma hora para outra, virarem meus inimigos? Foi aí que entendi as palavras do Nelson, ele também não estava interessado nessa guerra.

- Você jamais será minha inimiga – afirmei.

Ela deu um sorriso triste, jogou o cigarro na rua e levantou para apagá-lo com o pé.

- Adeus, querido – disse, virando as costas para mim e descendo a rua.

Sem nada para fazer na rua deserta e faltando menos de uma hora para o sol nascer, voei na forma de morcego para nosso esconderijo. Durante o dia, seria transportado para Ribeirão Preto e, após o próximo pôr do sol, estaria acordando na minha cidade natal. Eu não estava nenhum pouco ansioso por isso.


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N.A.: “O Vampiro de Curitiba” é um livro de Dalton Trevisan, cujo Nelsinho é o seu personagem principal. O personagem Nelson é uma homenagem à obra, leitura quase que obrigatória para os curitibanos como eu. Entretanto, não são os mesmos “vampiros”. 

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