O Pacato Antônio
O Demônio da Ira
apareceu pela primeira vez no dia em que Antônio não foi promovido. O Analista
de Negócios Júnior, ou qualquer coisa parecida e igualmente irrelevante, não
sabia que era Azazel quem estava ocupando o lugar do seu reflexo no espelho. Entretanto,
ficou claro que, embora as feições fossem as mesmas, os dois Antônios não
compartilhavam as mesmas idéias. Enquanto o real estava resignado com a escolha
do seu vizinho de baia para a Gerência dos Analistas Juniores, seu reflexo do outro
lado do espelho o fazia se perguntar por que ele fora ignorado por seus superiores.
Mas era só o primeiro dia de Azazel, e o rapaz não se deixou abalar pelas
dúvidas levantadas por seu reflexo. Carlos assumiu a gerência, Antônio
continuou servindo. Embora tivesse achado injusta a promoção de um colega com dois
anos a menos de empresa, aos poucos Antônio se deu por satisfeito por ainda ser
apenas um analista. Carlos tinha que lidar com as decisões importantes e
explicar para os chefes acima dele o não cumprimento das metas. O gerente assumia
os riscos, seus subordinados apenas cumpriam ordens. Uma posição confortável
para quem queria distância das guerras do mundo coorporativo.
Demorou mais alguns meses
para o demônio reaparecer no lugar do seu reflexo. Desta vez, Antônio suava
incontrolavelmente às vesperas do encontro com Paula. Não era exatamente um jantar
romântico, mas uma festa de reencontro dos ex-colegas de escola, e ela
provavelmente estaria lá. Aproveitaria para confessar a ela o que deveria ter
confessado quando ambos tinham quinze anos, e ele fora covarde demais para não
correr o risco de perder sua única amiga. Azazel, que já conhecia muito bem a
humanidade, sabia que teria grandes chances de presenciar um coração ser
partido, oportunidade única de envenenar sua pacata vítima com a Ira. Quando o
jovem deu meia volta para deixar o banheiro, o demônio resolveu que era hora de
sair detrás do espelho para acompanhá-lo.
O encontro de ex-alunos
estava tão enfadonho quanto previsto. Nenhuma daquelas pessoas fora realmente
amiga de Antônio nos tempos da escola. Só estava ali para encontrar a única
menina que valia seu tempo perdido. Paula. Ela finalmente tinha chegado. Linda
como ele se lembrava na formatura, e uma das poucas pessoas naquela festa que sabiam
que ele existia e que se preocupava em vir cumprimentá-lo. Ela ainda continuava
inteligente e espirituosa, ainda gostava das mesmas HQs e mangás, dos mesmos
livros, das mesmas bandas. Linda, inteligente e... casada!
Talvez poucos tenham conhecimento sobre
isso, mas a Ira também pode ser paciente. Azazel apenas observou enquanto o
pacato Antônio ouvia a grande notícia que sua única amiga do colegial lhe dera
sem nenhuma reação que demonstrasse sua frustração. Sem reação, simplesmente
baixou os olhos, fingiu um sorriso e murmurrou falsas felicitações, odiando
conhecer o tal marido que ela conhecera na faculdade. Ele era alto, do tipo
geração saúde e, aos olhos de Antônio, um grandissíssimo idiota. Passara o
resto da noite fazendo piadas sem graça sobre seus mangás preferidos, se
regogizando porque era Paula quem lia e fazia as resenhas dos livros que ele
precisava ler quando faziam a graduação juntos, e parecia ser incapaz de
entender por que algumas pessoas gostavam tanto de jogos de computador. Mas talvez
nada disso tivesse magoado mais Antônio que os olhos de Paula, brilhantes e
sempre direcionados ao marido. Ela amava o idiota, jamais olharia da mesma
forma para o antigo colega nerd da
escola.
Pacientemente, Azazel
esperou. O demônio apenas acompanhou seu novo peão de volta para casa. Queria
testá-lo, ver o quanto sua nova vítima era susceptível aos seus poderes.
Antônio estava
decepcionado demais consigo mesmo para dormir. Ligou o computador e entrou na
sua segunda vida, onde era o principal Guerreiro da guilda, com o maior número
de inimigos mortos e batalhas vencidas. Era. Porque naquela noite, enquanto ele
estivera perdendo tempo com sua ex-amada Paula, um Paladino havia ultrapassado
sua pontuação, ocupando seu lugar de direito. Mal ele apareceu como online, seus companheiros de guilda
começaram a passar piadinhas no chat sobre
sua queda de posição no jogo.
Azazel só precisou se
inclinar bem próximo ao ouvido de Antônio e sussurrar. No mundo virtual, era
mais fácil para Antonio soltar sua raiva sem medo das conseqüências. Seu Guerreiro
não podia matar os companheiros de guilda para mostrar-lhes quem era o melhor, e
por isso, uma vila inteira de seus inimigos foi massacrada no jogo. Os personagens
mortos eram fracos demais para lhe render algum ponto, mas Antônio não ligou. Até
então, ele era contra esse tipo de comportamento. Matar personagens mais fracos
não era honroso para seu Guerreiro, construído sobre batalhas elaboradas e a
derrota de inimigos poderosos. Era a primeira vez que se contentava em eliminar
personagens mais fracos com apenas um golpe, mostrando o quanto sua defesa era
impenetrável e seus ataques, mortais. Queria assombrar, matar e destruir. Era
compensador ver os outros sofrendo com a mesma Ira dentro dele, imaginando o Paladino
que roubou seu lugar sofrendo o mesmo que suas vítimas, ou otário marido de
Paula, ou Carlos e os demais gerentes que o ignoraram para a promoção. Um dia
ele lhes ensinaria a mesma lição pessoalmente, concluiu, era só uma questão de
tempo...
A madrugada de destruição
fez com que, na manhã seguinte, Antônio chegasse atrasado e cansado ao
trabalho. Ligou o computador da empresa e, como um bom e comportado analista,
começou a analisar as planilhas do dia. Os olhos mal conseguiam ficar abertos
por causa da chacina da madrugada, e seus dedos corriam pelas linhas e clicavam
nos botões mecanicamente, até que o alarme do programa soou, despertando-o. No
instante seguinte, a tela se apagou, e Antônio perdeu o trabalho de duas horas,
pois sonolento, havia esquecido de salvar regularmente o arquivo.
Várias cabeças se
levantaram sobre suas baias com os olhos arregalados e as bocas escancaradas
quando ouviram o berro do até então pacato Antônio. Muitos comentariam sobre
esse acesso de raiva incomum, entre risadinhas e ironias durante o almoço,
enquanto outros concluiriam que aquela fora a primeira vez que ouviram a voz
dele. Azazel, entretanto, não estava surpreso. Ele estava começando a provar
seu ponto, que até mesmo o espírito mais calmo podia ser encantado com a Ira.
Mas a tarde ainda traria
mais surpresas para os colegas de trabalho de Antônio. Depois de brigar
inúmeras vezes com o programa de computador que insistia em travar e obrigar o
pobre analista a refazer seu trabalho, Azazel cochichou mais algumas palavras
em seu ouvido. Desta vez não foi um berro que fez as pessoas se levantarem de
suas mesas e observarem, espantadas, na direção do lugar do Analista; foi um
teclado acertando violentamente a tela do monitor. Ninguém mais conseguiu
trabalhar depois que o técnico de informática chegou e Antônio começou a
berrar, culpando-o por todas as coisas que deram erradas naquele dia e pelas
demais desilusões de sua vida que o jovem estagiário jamais poderia imaginar. Antônio
descobriu que era fácil berrar com alguém abaixo dele, que apenas ouvia e não
revidava por medo de perder o miserável emprego. Era a mesma sensação de poder
que experimentara na madrugada, quando seu Guerreiro dizimou uma vila inteira
de fracos jogadores iniciantes.
O espetáculo só terminou
quando Carlos o levou para sua sala, dispensando o menino da informática e
pedindo para os demais voltarem às suas ocupações. O gerente foi compreensivo.
Entendeu que seu subordinado apenas sofria do mal que acometia os funcionários
mal pagos e sem perspectiva de futuro. Uma vez que não tinha como resolver este
problema, chamou o arroubo de Antônio de stress
e concedeu-lhe alguns dias de folga para descansar e procurar um médico. Não
precisaria se preocupar com os estragos daquele dia, nem com os relatórios
atrasados, contanto que, na próxima semana, o pacato Antônio voltasse a ocupar
o lugar em que ele sempre estivera produzindo, feliz, inofensivo e sem
reclamações.
Já em casa, o reflexo no
espelho lhe fez pensar sobre o ato generoso do gerente. Carlos roubara sua promoção
e agora aproveitara um deslize seu para afastá-lo por alguns dias da empresa.
Não importava se era apenas uma folga; aos poucos Antônio seria colocado de
lado, até que alguém decidisse que ele não era mais necessário. Talvez seu
reflexo estivesse exagerando, afinal, Carlos fora bastante compreensivo ao
ignorar o computador destruído e não lhe descontar do salário os dias de folga.
Ou talvez ele, Antônio, é que era sossegado demais e não via que os pessoas só estavam
se aproveitando de sua bondade. Carlos com a nova promoção e o salário de
gerente, Paula com o marido metido a gostosão, e até no seu mundinho virtual,
com aquele Paladino desgraçado que roubou sua posição imbatível no jogo. Estava
na hora dele mostrar ao mundo que o pacato Antônio também sabia revidar. Ele
sabia revidar, não sabia?
Antônio fugiu do diálogo
com o espelho para se transformar no seu Guerreiro Orc virtual. O Paladino que
roubara sua posição também estava online naquela
hora. O antigo Antônio teria chamado-o para um duelo, para provar, honesta e
honrosamente, quem era o melhor. Mas Azazel tinha outros planos.
Sim, foi o demônio quem
chamou o Elfo Paladino para o chat e
começou a fazer amizade com ele. Com a tarde livre para jogar e teclar, Antônio
descobriu que o homem por trás de seu rival era apenas um garoto. Treze anos,
filho de pais ausentes, e que coincidência ou ato calculado por seu demônio,
morava na mesma cidade, a apenas alguns quarteirões dali. Os dois passaram
horas conversando e destruindo inimigos. Quando o relógio anunciou nove e meia
da noite, foi Azazel quem se despediu no chat,
enquanto o inocente garoto avisou que continuaria online até altas horas da madrugada, horário em que seus pais
chegariam em casa.
As lojas do shopping já estavam fechando as portas
quando Antônio saiu carregando um taco de beisebol na sacola. Se tivesse
encontrado algum conhecido pelo caminho, teriam estranhado seu interesse súbito
por esportes. Talvez tivessem estranhado mais ainda o caminho que Antônio
começou a seguir, na direção oposta a sua casa.
Meia hora depois, o
jovem Paladino sorriu ao ver pela primeira vez o verdadeiro homem por trás do
Guerreiro Orc que ele tanto almejara alcançar nos seus jogos. Sua surpresa,
entretanto, cresceu quando percebeu o brilho nos olhos de Azazel.
- Como o seu Martelo da
Justiça vai ajudá-lo agora, Paladino? – foi a única coisa inteligível que o
homem que ele admirava lhe perguntara e, então, retirou um taco de beisebol da
sacola e começou a destruir a casa.
O menino correu,
tentando alcançar o telefone, mas Azazel tinha uma força e golpes certeiros,
destruindo qualquer maneira de comunicação. O pai tinha uma arma escondida na
casa, e esta foi a única maneira que o poderoso Paladino encontrou para se
defender. Correu, com o taco de beisebol ao seu encalço, até encontrar o
calibre .38 e apontá-lo para seu agressor. O que o jovem Paladino não sabia, é
que não se afugenta um demônio com uma arma. Azazel acertou o primeiro e mortal
golpe na cabeça do rapaz, e o revólver caiu no chão.
O sangue não assustou
Antônio. A arma, esta sim, lhe chamou a atenção. Não seria capaz de mostrar sua
Ira contra Paula e o marido usando apenas um taco de beisebol, mas a arma podia
ser útil. Satisfeito e num estado de satisfação nunca antes alcançado, ele deixou
a casa calmamente. A rua estava deserta. Ele já estaria em casa, de volta para o
mundo onde era o destemido Guerreiro Orc, quando alguém encontrasse o corpo do Paladino
que ousou desafiá-lo.
As notícias no início do
final de semana foram recheadas de dúvidas e inquietações a respeito do
misterioso caso do menino de treze anos, encontrado morto em meio à casa
destruída. A polícia estava sem pistas, uma vez que, aparentemente, os pais do
garoto não tinham inimigos. Mas Antônio não estava interessado no noticiário da
TV. Sua atenção naqueles dias estava voltada para os hábitos de Paula e seu
marido. Mais tarde, diriam que foi o ciúme que fez com que o antigo colega de
colegial invadisse a casa dela num horarário onde a maioria da vizinhança
estaria ausente e disparasse nos dois à queima-roupa, destruindo todo o
apartamento logo em seguida. Foi só por intermédio de Azazel que ele conseguiu
deixar o prédio antes dos vizinhos aparecerem e enxergá-lo. Foi o demônio
também quem lhe mostrou o esconderijo da arma e das balas que, coincidência ou
não, o marido de Paula guardava para sua proteção. Agora Antônio tinha duas
armas e muita munição. E Azazel
continuava ao seu lado.
A manhã de segunda-feira
ficou conhecida como sangrenta entre os sobreviventes do edifício comercial do
centro da cidade. Antônio entrou calmamente, as duas armas escondidas sob a
roupa, até que, ainda no elevador, alguém o reconheceu e perguntou por que ele
estava ali se havia ganhado uns dias de folga. A resposta lhe foi dada por
Azazel e uma bala certeira na testa.
Quando o elevador parou
no andar desejado, os outros três ocupantes também estavam caídos no chão.
Apenas Antônio saiu, e o ataque de Azazel começou. Portas de vidro foram
quebradas, mesas destruídas, computadores jogados contra parede. Qualquer um
que quisesse impedir Antônio de externar todo o ódio que ele sentia daquele
lugar levava uma bala na cabeça. Quando destruir móveis deixou de satisfazê-lo,
ele foi atrás de suas vítimas. Seus companheiros de baia, aqueles que fingiam
que não o conheciam, mas riam dele às escondidas, estavam encolhidos num canto.
Carlos estava com eles. Ele foi o primeiro, uma lição por ter lhe roubado a
promoção de gerente. Percebeu que sua Ira alimentava o medo dos demais, e isso o
deixava mais confiante e poderoso. Foi assim que Antônio descobriu como era bom
ter poder sobre as pessoas, ao invés do medo de irritá-las. Ele brincou com
suas vítimas antes de escolher quem seria o próximo, gritou com eles, berrou
tudo o que guardava dentro de si antes de apertar o gatilho. Alguns imploravam por
misericórdia, outros apenas choravam desesperados. Não importava, ele observava
e atirava, e então virava-se para o próximo, alimentando-se do medo nos olhares
deles.
Até que chegou o momento
em que as balas acabaram e o tiroteio cessou. O silêncio reinou por um momento,
exceto pelos soluços dos que ainda restavam encolhidos contra a parede.
Enquanto recarregava as armas com o último jogo de munição, Antônio ouviu as
sirenes da polícia lá em baixo, e as freadas bruscas das viaturas estacionando na
rua.
Foi quando ele se
lembrou por que escolhera ser o pacato Antônio. Destruir, quebrar e bater era
fácil quando se tinha duas armas nas mãos e meros funcionários inofensivos na
frente. Mas as balas estavam no fim, e a polícia era bem mais equipada que ele.
Antônio sempre fora um covarde. Como ele enfrentaria dois ou três policiais,
armados e treinados? Foi por medo de assumir maiores responsabilidades que ele
se resignou com a perda da promoção. Foi por medo de perder a amizade de Paula
que ele nunca foi sincero com seus sentimentos quando os dois ainda eram
colegas de classe. Era incapaz de revidar brincadeirinhas de seus colegas por
medo de apanhar ou de perder o emprego. Era só no RPG online que ele conseguia lutar, porque sabia que nada de mal lhe
aconteceria fora do computador. Mas na vida real, Antônio era covarde demais
para enfrentar a prisão, o ódio dos familiares de suas vítimas, a vergonha dos
seus parentes distantes. Era por isso que ele nunca havia permitido sua Ira se
mostrar. Mas agora era tarde demais.
Os primeiros políciais
já haviam chegado ao andar da chacina pelo elevador de serviço. Antônio sabia
pela campainha que soava cada vez que aquelas portas se abriam. Sendo um
covarde, ele não tinha escolha. Podia se aproveitar da presença de Azazel,
atirar nos policiais e sair correndo. O demônio certamente abriria as portas e
lhe mostraria o caminho certo para fujir sem ser pego. Mas não... Antônio não
tinha coragem para enfrentar as consequências de sua própria Ira; decidiu pelo
caminho mais fácil, já que esta sempre fora a escolha dos fracos. Quando o
primeiro policial engatilhou a arma às suas costas e gritou para que ele
levantasse os braços, Antônio colocou o cano do revólver na boca e atirou
contra si próprio.
Os jornais passariam o
resto da semana se perguntando o que teria feito o pacato Antônio cair num
ataque de Ira tão destruidor. Uns culpariam o jogo que lhe ocupava quase todos
os momentos de folga, outros diriam que foi a rejeição da antiga colega de
escola, poucos se lembrariam de como ele era infeliz em seu emprego. Os motivos
de Antônio não importavam para Azazel. Ele tinha provado seu ponto. Não existe
ser humano pacífico. Um dia, todos eles acabam sucumbido à Ira. Antônio foi
apenas o instrumento. Seu pequeno arroubo trouxe a indignação da população, o
ódio contra jogos violentos, o desejo de vingança daqueles que perderam seus
entes queridos... qualquer motivo, fútil ou não, era desculpa para uma boa briga.
E Azazel sorria, vitorioso.
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