O Pacato Antônio

Este conto foi escrito originalmente para a série VII Demônios - Ira, da Editora Estronho, sobre o pecado capital Ira e seu demônio Azazel. Como o texto não foi classificado para a antologia, estou postando aqui, para que todos possam ler. 


O Pacato Antônio

O Demônio da Ira apareceu pela primeira vez no dia em que Antônio não foi promovido. O Analista de Negócios Júnior, ou qualquer coisa parecida e igualmente irrelevante, não sabia que era Azazel quem estava ocupando o lugar do seu reflexo no espelho. Entretanto, ficou claro que, embora as feições fossem as mesmas, os dois Antônios não compartilhavam as mesmas idéias. Enquanto o real estava resignado com a escolha do seu vizinho de baia para a Gerência dos Analistas Juniores, seu reflexo do outro lado do espelho o fazia se perguntar por que ele fora ignorado por seus superiores. Mas era só o primeiro dia de Azazel, e o rapaz não se deixou abalar pelas dúvidas levantadas por seu reflexo. Carlos assumiu a gerência, Antônio continuou servindo. Embora tivesse achado injusta a promoção de um colega com dois anos a menos de empresa, aos poucos Antônio se deu por satisfeito por ainda ser apenas um analista. Carlos tinha que lidar com as decisões importantes e explicar para os chefes acima dele o não cumprimento das metas. O gerente assumia os riscos, seus subordinados apenas cumpriam ordens. Uma posição confortável para quem queria distância das guerras do mundo coorporativo.
Demorou mais alguns meses para o demônio reaparecer no lugar do seu reflexo. Desta vez, Antônio suava incontrolavelmente às vesperas do encontro com Paula. Não era exatamente um jantar romântico, mas uma festa de reencontro dos ex-colegas de escola, e ela provavelmente estaria lá. Aproveitaria para confessar a ela o que deveria ter confessado quando ambos tinham quinze anos, e ele fora covarde demais para não correr o risco de perder sua única amiga. Azazel, que já conhecia muito bem a humanidade, sabia que teria grandes chances de presenciar um coração ser partido, oportunidade única de envenenar sua pacata vítima com a Ira. Quando o jovem deu meia volta para deixar o banheiro, o demônio resolveu que era hora de sair detrás do espelho para acompanhá-lo.
O encontro de ex-alunos estava tão enfadonho quanto previsto. Nenhuma daquelas pessoas fora realmente amiga de Antônio nos tempos da escola. Só estava ali para encontrar a única menina que valia seu tempo perdido. Paula. Ela finalmente tinha chegado. Linda como ele se lembrava na formatura, e uma das poucas pessoas naquela festa que sabiam que ele existia e que se preocupava em vir cumprimentá-lo. Ela ainda continuava inteligente e espirituosa, ainda gostava das mesmas HQs e mangás, dos mesmos livros, das mesmas bandas. Linda, inteligente e... casada!
 Talvez poucos tenham conhecimento sobre isso, mas a Ira também pode ser paciente. Azazel apenas observou enquanto o pacato Antônio ouvia a grande notícia que sua única amiga do colegial lhe dera sem nenhuma reação que demonstrasse sua frustração. Sem reação, simplesmente baixou os olhos, fingiu um sorriso e murmurrou falsas felicitações, odiando conhecer o tal marido que ela conhecera na faculdade. Ele era alto, do tipo geração saúde e, aos olhos de Antônio, um grandissíssimo idiota. Passara o resto da noite fazendo piadas sem graça sobre seus mangás preferidos, se regogizando porque era Paula quem lia e fazia as resenhas dos livros que ele precisava ler quando faziam a graduação juntos, e parecia ser incapaz de entender por que algumas pessoas gostavam tanto de jogos de computador. Mas talvez nada disso tivesse magoado mais Antônio que os olhos de Paula, brilhantes e sempre direcionados ao marido. Ela amava o idiota, jamais olharia da mesma forma para o antigo colega nerd da escola.
Pacientemente, Azazel esperou. O demônio apenas acompanhou seu novo peão de volta para casa. Queria testá-lo, ver o quanto sua nova vítima era susceptível aos seus poderes.
Antônio estava decepcionado demais consigo mesmo para dormir. Ligou o computador e entrou na sua segunda vida, onde era o principal Guerreiro da guilda, com o maior número de inimigos mortos e batalhas vencidas. Era. Porque naquela noite, enquanto ele estivera perdendo tempo com sua ex-amada Paula, um Paladino havia ultrapassado sua pontuação, ocupando seu lugar de direito. Mal ele apareceu como online, seus companheiros de guilda começaram a passar piadinhas no chat sobre sua queda de posição no jogo.
Azazel só precisou se inclinar bem próximo ao ouvido de Antônio e sussurrar. No mundo virtual, era mais fácil para Antonio soltar sua raiva sem medo das conseqüências. Seu Guerreiro não podia matar os companheiros de guilda para mostrar-lhes quem era o melhor, e por isso, uma vila inteira de seus inimigos foi massacrada no jogo. Os personagens mortos eram fracos demais para lhe render algum ponto, mas Antônio não ligou. Até então, ele era contra esse tipo de comportamento. Matar personagens mais fracos não era honroso para seu Guerreiro, construído sobre batalhas elaboradas e a derrota de inimigos poderosos. Era a primeira vez que se contentava em eliminar personagens mais fracos com apenas um golpe, mostrando o quanto sua defesa era impenetrável e seus ataques, mortais. Queria assombrar, matar e destruir. Era compensador ver os outros sofrendo com a mesma Ira dentro dele, imaginando o Paladino que roubou seu lugar sofrendo o mesmo que suas vítimas, ou otário marido de Paula, ou Carlos e os demais gerentes que o ignoraram para a promoção. Um dia ele lhes ensinaria a mesma lição pessoalmente, concluiu, era só uma questão de tempo...
A madrugada de destruição fez com que, na manhã seguinte, Antônio chegasse atrasado e cansado ao trabalho. Ligou o computador da empresa e, como um bom e comportado analista, começou a analisar as planilhas do dia. Os olhos mal conseguiam ficar abertos por causa da chacina da madrugada, e seus dedos corriam pelas linhas e clicavam nos botões mecanicamente, até que o alarme do programa soou, despertando-o. No instante seguinte, a tela se apagou, e Antônio perdeu o trabalho de duas horas, pois sonolento, havia esquecido de salvar regularmente o arquivo.
Várias cabeças se levantaram sobre suas baias com os olhos arregalados e as bocas escancaradas quando ouviram o berro do até então pacato Antônio. Muitos comentariam sobre esse acesso de raiva incomum, entre risadinhas e ironias durante o almoço, enquanto outros concluiriam que aquela fora a primeira vez que ouviram a voz dele. Azazel, entretanto, não estava surpreso. Ele estava começando a provar seu ponto, que até mesmo o espírito mais calmo podia ser encantado com a Ira.
Mas a tarde ainda traria mais surpresas para os colegas de trabalho de Antônio. Depois de brigar inúmeras vezes com o programa de computador que insistia em travar e obrigar o pobre analista a refazer seu trabalho, Azazel cochichou mais algumas palavras em seu ouvido. Desta vez não foi um berro que fez as pessoas se levantarem de suas mesas e observarem, espantadas, na direção do lugar do Analista; foi um teclado acertando violentamente a tela do monitor. Ninguém mais conseguiu trabalhar depois que o técnico de informática chegou e Antônio começou a berrar, culpando-o por todas as coisas que deram erradas naquele dia e pelas demais desilusões de sua vida que o jovem estagiário jamais poderia imaginar. Antônio descobriu que era fácil berrar com alguém abaixo dele, que apenas ouvia e não revidava por medo de perder o miserável emprego. Era a mesma sensação de poder que experimentara na madrugada, quando seu Guerreiro dizimou uma vila inteira de fracos jogadores iniciantes.
O espetáculo só terminou quando Carlos o levou para sua sala, dispensando o menino da informática e pedindo para os demais voltarem às suas ocupações. O gerente foi compreensivo. Entendeu que seu subordinado apenas sofria do mal que acometia os funcionários mal pagos e sem perspectiva de futuro. Uma vez que não tinha como resolver este problema, chamou o arroubo de Antônio de stress e concedeu-lhe alguns dias de folga para descansar e procurar um médico. Não precisaria se preocupar com os estragos daquele dia, nem com os relatórios atrasados, contanto que, na próxima semana, o pacato Antônio voltasse a ocupar o lugar em que ele sempre estivera produzindo, feliz, inofensivo e sem reclamações. 
Já em casa, o reflexo no espelho lhe fez pensar sobre o ato generoso do gerente. Carlos roubara sua promoção e agora aproveitara um deslize seu para afastá-lo por alguns dias da empresa. Não importava se era apenas uma folga; aos poucos Antônio seria colocado de lado, até que alguém decidisse que ele não era mais necessário. Talvez seu reflexo estivesse exagerando, afinal, Carlos fora bastante compreensivo ao ignorar o computador destruído e não lhe descontar do salário os dias de folga. Ou talvez ele, Antônio, é que era sossegado demais e não via que os pessoas só estavam se aproveitando de sua bondade. Carlos com a nova promoção e o salário de gerente, Paula com o marido metido a gostosão, e até no seu mundinho virtual, com aquele Paladino desgraçado que roubou sua posição imbatível no jogo. Estava na hora dele mostrar ao mundo que o pacato Antônio também sabia revidar. Ele sabia revidar, não sabia?
Antônio fugiu do diálogo com o espelho para se transformar no seu Guerreiro Orc virtual. O Paladino que roubara sua posição também estava online naquela hora. O antigo Antônio teria chamado-o para um duelo, para provar, honesta e honrosamente, quem era o melhor. Mas Azazel tinha outros planos.
Sim, foi o demônio quem chamou o Elfo Paladino para o chat e começou a fazer amizade com ele. Com a tarde livre para jogar e teclar, Antônio descobriu que o homem por trás de seu rival era apenas um garoto. Treze anos, filho de pais ausentes, e que coincidência ou ato calculado por seu demônio, morava na mesma cidade, a apenas alguns quarteirões dali. Os dois passaram horas conversando e destruindo inimigos. Quando o relógio anunciou nove e meia da noite, foi Azazel quem se despediu no chat, enquanto o inocente garoto avisou que continuaria online até altas horas da madrugada, horário em que seus pais chegariam em casa.
As lojas do shopping já estavam fechando as portas quando Antônio saiu carregando um taco de beisebol na sacola. Se tivesse encontrado algum conhecido pelo caminho, teriam estranhado seu interesse súbito por esportes. Talvez tivessem estranhado mais ainda o caminho que Antônio começou a seguir, na direção oposta a sua casa.
Meia hora depois, o jovem Paladino sorriu ao ver pela primeira vez o verdadeiro homem por trás do Guerreiro Orc que ele tanto almejara alcançar nos seus jogos. Sua surpresa, entretanto, cresceu quando percebeu o brilho nos olhos de Azazel.
- Como o seu Martelo da Justiça vai ajudá-lo agora, Paladino? – foi a única coisa inteligível que o homem que ele admirava lhe perguntara e, então, retirou um taco de beisebol da sacola e começou a destruir a casa.
O menino correu, tentando alcançar o telefone, mas Azazel tinha uma força e golpes certeiros, destruindo qualquer maneira de comunicação. O pai tinha uma arma escondida na casa, e esta foi a única maneira que o poderoso Paladino encontrou para se defender. Correu, com o taco de beisebol ao seu encalço, até encontrar o calibre .38 e apontá-lo para seu agressor. O que o jovem Paladino não sabia, é que não se afugenta um demônio com uma arma. Azazel acertou o primeiro e mortal golpe na cabeça do rapaz, e o revólver caiu no chão.
O sangue não assustou Antônio. A arma, esta sim, lhe chamou a atenção. Não seria capaz de mostrar sua Ira contra Paula e o marido usando apenas um taco de beisebol, mas a arma podia ser útil. Satisfeito e num estado de satisfação nunca antes alcançado, ele deixou a casa calmamente. A rua estava deserta. Ele já estaria em casa, de volta para o mundo onde era o destemido Guerreiro Orc, quando alguém encontrasse o corpo do Paladino que ousou desafiá-lo.
As notícias no início do final de semana foram recheadas de dúvidas e inquietações a respeito do misterioso caso do menino de treze anos, encontrado morto em meio à casa destruída. A polícia estava sem pistas, uma vez que, aparentemente, os pais do garoto não tinham inimigos. Mas Antônio não estava interessado no noticiário da TV. Sua atenção naqueles dias estava voltada para os hábitos de Paula e seu marido. Mais tarde, diriam que foi o ciúme que fez com que o antigo colega de colegial invadisse a casa dela num horarário onde a maioria da vizinhança estaria ausente e disparasse nos dois à queima-roupa, destruindo todo o apartamento logo em seguida. Foi só por intermédio de Azazel que ele conseguiu deixar o prédio antes dos vizinhos aparecerem e enxergá-lo. Foi o demônio também quem lhe mostrou o esconderijo da arma e das balas que, coincidência ou não, o marido de Paula guardava para sua proteção. Agora Antônio tinha duas armas e muita munição.  E Azazel continuava ao seu lado.
A manhã de segunda-feira ficou conhecida como sangrenta entre os sobreviventes do edifício comercial do centro da cidade. Antônio entrou calmamente, as duas armas escondidas sob a roupa, até que, ainda no elevador, alguém o reconheceu e perguntou por que ele estava ali se havia ganhado uns dias de folga. A resposta lhe foi dada por Azazel e uma bala certeira na testa.
Quando o elevador parou no andar desejado, os outros três ocupantes também estavam caídos no chão. Apenas Antônio saiu, e o ataque de Azazel começou. Portas de vidro foram quebradas, mesas destruídas, computadores jogados contra parede. Qualquer um que quisesse impedir Antônio de externar todo o ódio que ele sentia daquele lugar levava uma bala na cabeça. Quando destruir móveis deixou de satisfazê-lo, ele foi atrás de suas vítimas. Seus companheiros de baia, aqueles que fingiam que não o conheciam, mas riam dele às escondidas, estavam encolhidos num canto. Carlos estava com eles. Ele foi o primeiro, uma lição por ter lhe roubado a promoção de gerente. Percebeu que sua Ira alimentava o medo dos demais, e isso o deixava mais confiante e poderoso. Foi assim que Antônio descobriu como era bom ter poder sobre as pessoas, ao invés do medo de irritá-las. Ele brincou com suas vítimas antes de escolher quem seria o próximo, gritou com eles, berrou tudo o que guardava dentro de si antes de apertar o gatilho. Alguns imploravam por misericórdia, outros apenas choravam desesperados. Não importava, ele observava e atirava, e então virava-se para o próximo, alimentando-se do medo nos olhares deles.
Até que chegou o momento em que as balas acabaram e o tiroteio cessou. O silêncio reinou por um momento, exceto pelos soluços dos que ainda restavam encolhidos contra a parede. Enquanto recarregava as armas com o último jogo de munição, Antônio ouviu as sirenes da polícia lá em baixo, e as freadas bruscas das viaturas estacionando na rua.
Foi quando ele se lembrou por que escolhera ser o pacato Antônio. Destruir, quebrar e bater era fácil quando se tinha duas armas nas mãos e meros funcionários inofensivos na frente. Mas as balas estavam no fim, e a polícia era bem mais equipada que ele. Antônio sempre fora um covarde. Como ele enfrentaria dois ou três policiais, armados e treinados? Foi por medo de assumir maiores responsabilidades que ele se resignou com a perda da promoção. Foi por medo de perder a amizade de Paula que ele nunca foi sincero com seus sentimentos quando os dois ainda eram colegas de classe. Era incapaz de revidar brincadeirinhas de seus colegas por medo de apanhar ou de perder o emprego. Era só no RPG online que ele conseguia lutar, porque sabia que nada de mal lhe aconteceria fora do computador. Mas na vida real, Antônio era covarde demais para enfrentar a prisão, o ódio dos familiares de suas vítimas, a vergonha dos seus parentes distantes. Era por isso que ele nunca havia permitido sua Ira se mostrar. Mas agora era tarde demais.
Os primeiros políciais já haviam chegado ao andar da chacina pelo elevador de serviço. Antônio sabia pela campainha que soava cada vez que aquelas portas se abriam. Sendo um covarde, ele não tinha escolha. Podia se aproveitar da presença de Azazel, atirar nos policiais e sair correndo. O demônio certamente abriria as portas e lhe mostraria o caminho certo para fujir sem ser pego. Mas não... Antônio não tinha coragem para enfrentar as consequências de sua própria Ira; decidiu pelo caminho mais fácil, já que esta sempre fora a escolha dos fracos. Quando o primeiro policial engatilhou a arma às suas costas e gritou para que ele levantasse os braços, Antônio colocou o cano do revólver na boca e atirou contra si próprio.
Os jornais passariam o resto da semana se perguntando o que teria feito o pacato Antônio cair num ataque de Ira tão destruidor. Uns culpariam o jogo que lhe ocupava quase todos os momentos de folga, outros diriam que foi a rejeição da antiga colega de escola, poucos se lembrariam de como ele era infeliz em seu emprego. Os motivos de Antônio não importavam para Azazel. Ele tinha provado seu ponto. Não existe ser humano pacífico. Um dia, todos eles acabam sucumbido à Ira. Antônio foi apenas o instrumento. Seu pequeno arroubo trouxe a indignação da população, o ódio contra jogos violentos, o desejo de vingança daqueles que perderam seus entes queridos... qualquer motivo, fútil ou não, era desculpa para uma boa briga.
E Azazel sorria, vitorioso. 




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